Contos





O VESTIDO
Um conto de Angelo Romero


     Jurema, ao acordar, fez tudo o que estava acostumada a fazer. Sempre foi muito metódica. Bebeu um copo d´água, em jejum, que deixara de véspera sobre a mesinha de cabeceira. Espreguiçou-se e esfregou os olhos com as costas das mãos. Benzeu-se e agradeceu a Deus por uma boa noite de sono e por um novo dia a viver. No banheiro lavou o rosto, escovou os dentes e passou uma escova nos cabelos. Foi aí que não reconheceu a imagem que viu através do espelho. Aquele rosto não poderia ser o dela. Parecido, talvez. As olheiras estavam fundas, como se tivesse tido uma noite mal dormida e os olhos inflamados como se tivesse chorado a noite inteira. Não lembrou de ter tido pesadelo. Preocupou-se. Passou  uma loção nacional própria para limpeza da pele, no rosto, e um caríssimo creme importado, contra rugas. Esperou alguns segundos por um resultado melhor. Nada adiantou. A manhã, primaveril, estava radiosa. Era seu primeiro dia das férias tão esperadas. Se tivesse dinheiro sobrando, faria uma pequena viagem. As férias passadas nos mesmos lugares de sempre, parecem que não fazem o efeito desejado. O espírito sugere um novo cenário e a matéria agradece. Colocaria o supérfluo na poupança e economizaria para as próximas férias.
     Estava nua como um ponto de interrogação. Não sabia o que colocar no lugar da camisola que atirou sobre a cama. A interrogação cabia, pois não sabia se sairia ou não. Se resolvesse passar o dia em casa, teria muitas coisas para por em ordem. Teria trabalho e o trabalho não seria condizente com o primeiro dia de férias. Mas sair com aquela cara de missa de velório, não lhe agradava. Um vestido novo poderia ser uma solução. Mas, com que dinheiro? Se comprasse um vestido, sobraria pouco para se divertir nos próximos 29 dias. Foi aí que ela se lembrou de Mara, sua melhor amiga. Aquele vestido azul turquesa, de alcinhas e estampado com delicadas flores do campo, poderia lhe cair bem. Em Mara ficava ótimo. O bom caimento dependeria, talvez, do tamanho do busto. O de Mara era maior. Será que o dela preencheria o espaço, sem prejudicar a forma? No manequim o vestido tem um caimento e no corpo da cliente costuma ter outro. É para isso que se experimenta antes de se realizar a compra. E num empréstimo? É a mesma coisa – concluiu. Lembrou-se que não via Mara por aquele vestido a um bom tempo. Estaria em boas condições de uso, ou melhor, daria a impressão de vestido novo, saído da loja? Mara o emprestaria? Jurema cobriu a nudez com aquelas perguntas. Ainda nua, abriu a porta do guarda-roupa e colocou-se diante do espelho. Imaginou-se dentro do vestido azul turquesa. Coisa de mulher com imaginação fértil. Pela primeira vez, naquele dia, sentiu-se bem. O poder da imaginação é imensurável! O primeiro passo para solucionar o problema poderia estar no telefone celular. Se Mara atendesse a ligação, todas as suas interrogações teriam respostas. Mas seu aparelho estava descarregado. Se fosse colocar para carregar, perderia tempo e, o pior, poderia perder o interesse. Será que encontraria Mara em casa? – pensou e logo respondeu para si mesma: - claro que está cozinhando. O marido trabalha em meio expediente e só sai de casa depois de almoçar. Depois que adquiriu o aparelho celular, Jurema passou a não comprar mais fichas de telefone. Será que ainda tinha alguma em seu cofre de moedas? E se não tivesse, o bar que vende fichas estaria aberto naquele feriado? Na literatura da vida feminina não é o ponto parágrafo que conduz a mulher a trocar de linha, é o ponto de interrogação. Este é que é o ponto que a faz perder tempo. Revirou a casa para encontrar o cofrinho e uma ficha já enferrujada para o orelhão da esquina. Mara atendeu ao chamado em seu telefone fixo, instalado na parede da cozinha. Jurema conseguiu ouvir o barulho de tampas e panelas. O tal vestido estava praticamente novo, afirmou Mara, depois de dizer que só o usara uma duas ou três vezes. O emprestaria com prazer e só não o daria para a amiga, por ter sido presente de aniversário do marido.
     Jurema constatou que o vestido estava praticamente novo e limpo e que bastaria passá-lo a ferro para tirar o amarrotado. Foi o que fez logo que chegou de volta a casa. Vestiu o vestido e olhou-se diante do espelho.  O caimento estava perfeito, mas não combinava com as expressões abatidas. De pouco lhe adiantaria um vestido novo, num rosto envelhecido. Este sim é que se pudesse, o passaria a ferro para alisá-lo e eliminar as rugas. Optou por um banho morno, sabonete sedoso e uma leve maquiagem para a manhã ensolarada. Suas formas eram perfeitas e tudo em Jurema era fruto da natureza. Apenas os cílios eram postiços, já que os seus eram curtos e ralos. Antes de sair, postou-se diante do espelho para se certificar de que não precisaria de retoques.
     Saiu cantarolando “Garota de Ipanema” e decidiu que era para a praia que Jobim a tornou famosa, que iria almoçar e passar o resto do dia. Jurema era de Câncer, cujo signo é água. O ar marinho sempre lhe fez bem. Como havia poucos passageiros no ônibus, ela pode escolher para sentar em seu lugar favorito: junto à janela, no banco do meio do carro, no lado oposto ao do motorista. No banco, do lado oposto, dois jovens, carregando livros e revistas, conversavam animadamente sobre literatura.  O que estava na ponta, olhou para ela e esboçou um leve sorriso. Depois, comentou qualquer coisa com o companheiro que a olhou também, mas não sorriu. Jurema corou. Retirou o espelho da bolsa, imediatamente, para conferir o rosto. Logo a seguir, puxou a saia para baixo, tentando cobrir os joelhos. Depois, pensou: É normal. Os homens sempre olham quando a mulher está desacompanhada. Teria tido som o que acabara de pensar? Foi o que imaginou, pois foi logo em seguida que os dois rapazes sorriram para ela e o que estava na ponta do banco, falou: - Não se preocupe. Não há nada errado com você. Aquilo poderia ser um elogio, mas ela fez o que as mulheres costumam fazer quando ouvem um galanteio na rua: fecha a cara, para não demonstrar que gostou.
     Tanto ela, quanto os rapazes, saltaram no fim da linha. Novamente ouve troca de olhares entre os três. Porém, desta vez Jurema percebeu que o olhar do rapaz que havia feito o comentário lhe pareceu mais intenso e profundo, do tipo de quem gostaria de conhecê-la melhor, mas era tímido ou estava com pressa. Embora o sinal para atravessar a rua estivesse aberto, Jurema parou. Custou a entender seu gesto. Talvez tenha parado para dar tempo de uma abordagem direta. Corou mais uma vez, envergonhada. O fato é que ao entrar no restaurante, sentia-se bem mais segura.
     - Quer escolher a mesa, senhorita? – Perguntou o maitre, com uma mesura. O fato de ser tratada por senhorita, já lhe fez bem ao ego.
     - Deixo a seu critério – respondeu. - Como está desacompanhada, sugiro aquela mesinha do canto – e apontou. Ficará mais à vontade, tem boa claridade, é fresca e não fica tão próxima ao ar condicionado.
     Depois de lhe entregar o cardápio, o maitre bateu palmas para chamar o garçom. Jurema se sentiu aplaudida e sorriu pela primeira vez.
     Durante o tempo em que almoçou, pode perceber alguns olhares de admiração. Uns discretos; outros reveladores. Principalmente o olhar de um senhor de têmporas grisalhas que lhe caiam bem no rosto de belas feições, mas que estava acompanhado de uma senhora, também de boa aparência e que deveria ser sua esposa. Foi o único olhar que a incomodou. O homem, quando cavalheiro, deve respeitar sua acompanhante, seja ela quem for. Quem age assim com uma, agirá com qualquer outra – pensou, recriminando-o.
     Sabia que os garçons são instruídos para servir bem e sempre com um sorriso estampado no rosto. Entretanto, o garçom que a servia, sorria de forma diferente, como se estivesse encantado, ou melhor, como se estivesse atraído por sua beleza. Jurema pagou pela atenção e pelos sorrisos, deixando-o uma boa gorjeta. E, ao ultrapassar a porta do restaurante, para a rua, esbarrou num rapaz que estava ali parado, remexendo os bolsos. Ambos se desculparam e o rapaz falou: - A jovem fuma?
     Surpresa, Jurema hesitou e apenas balbuciou: - Por quê?
     Nós, fumantes, fomos excluídos da sociedade. Quando estamos em lugar público, fechado, temos que sair para fumar e eu estou sem fósforos.
     E já com o maço de cigarros na mão, voltou a perguntar: - Você por acaso tem fósforos ou isqueiro? - Não, lamento – respondeu ela.
     Imediatamente o rapaz lhe ofereceu um cigarro, revirou mais uma vez os bolsos e encontrou um isqueiro. Uma luz se acendeu e Jurema lembrou que ele foi um dos rapazes que a tinha olhado durante o jantar. Sorriu e, automaticamente, aceitou o cigarro.
     - Gosta de um bom café? – voltou ele a perguntar. E sem esperar pela resposta, segurou-a levemente pelo braço e indicou um bar na esquina do outro lado da rua. – Ali servem um café de primeira! Vou lhe acender o cigarro após tomarmos o café. O sabor do cigarro ficará melhor.
     Não era exatamente um bar. Era uma cafeteria com mesinhas para que o café expresso fosse degustado com maior prazer. E o melhor, oferecia uma área exclusiva para fumantes.
     E foi ao sentar na cafeteria que Jurema se deu conta de que agira como um autômato e que jamais havia passado por igual situação. Estava magnetizada por inteiro. Imaginou-se um barquinho, sem tripulante, ao sabor dos ventos e das ondas, a procura de um porto seguro. Que o porto seja seguro – voltou a pensar na imagem – mas, enquanto for agradável a viagem, que o tal porto esteja bem distante.
     - Você é... Ele a interrompeu: Julio César, mas pode me tratar por César. – Você é amante de um bom café? – completou a pergunta. – Sou amante da vida e de tudo de bom que a vida pode nos oferecer. O som da palavra “amante” é muito forte. Parece reverberar. Jurema sentiu arrepios.
     Ao chegarem ao terceiro café e ao terceiro cigarro, pareciam íntimos como se há muito tempo se conhecessem. Vez por outra ela sorria. César era publicitário, culto, envolvente e bem humorado.
     A vida deveria parar ali, ou melhor, deveria ser sempre assim, repetida como o primeiro encontro de pessoas ávidas por se conhecerem e atraídas uma pela outra. Jamais deveriam mudar o roteiro para que não se conhecessem por completo. A busca pelo conhecimento proporciona a felicidade; já o conhecimento completo, acomoda uma intimidade exagerada, causa danos, torna a vida enfadonha, destruindo a surpresa. Este, provavelmente, deveria ser o pensamento dos dois.
     Não houve beijos na despedida. Ficaram no quase. Prolongar o desejo aviva a memória. Mas trocaram tudo o que tinham direito: endereços, e-mails e telefones.
     Na manhã seguinte Jurema foi acordada por uma encomenda que lhe foi entregue: Uma dúzia de rosas chá e um cartão com convite para jantar.
     Ao cair da tarde foi devolver o vestido à amiga. Ao entregá-lo, agradeceu e perguntou, simplesmente: - O que lhe acontece, Mara, quando você usa este vestido?    







UM CORPO SOB O PLÁSTICO CINZA
(Um conto de Angelo Romero)


     Ele passou cambaleando pela porta da boate. O porteiro da casa noturna chegou a comentar com um motorista de táxi:
     - Poxa  esse cara que passou por aqui tá muito chumbado! Ou bebeu demais, ou se drogou além da conta...
     A noite estava escura, chuvosa e o porteiro não conseguiu ver a expressão de dor estampada no rosto do transeunte. Este, por sua vez, cambaleou mais alguns passos e foi cair a uns dez metros da porta da boate. O último gemido foi quase um urro. O som angustiante ecoou na rua semi-deserta. O porteiro e o motorista acorreram ao local e assistiram ao derradeiro suspiro.
     Ele era jovem. Aparentava ter uns vinte e poucos anos. Era mulato claro, alto, forte e de traços finos. Trajava calça jeans, camisa de malha vermelha e um par de tênis azul. O projétil que lhe perfurara o tórax fora fatal.
     Em pouco tempo formou-se uma pequena multidão em volta do morto. Ninguém viu de onde, quando ou quem o trouxe, mas o fato é que ali já estavam um plástico cinza e uma vela acesa. Agora o corpo estava coberto e a alma velada.
     O porteiro da boate comunicou o fato ao Distrito Policial da área, e quinze minutos após a ligação telefônica chegou um carro “patrulhinha”. Imediatamente os policiais iniciaram as diligenciais. Como a vitima não havia sido baleada naquele local, e com ela nada havia sido encontrado que pudesse identificá-la, resolveram providenciar a remoção do corpo para o Instituto Médico Legal. Se o corpo não fosse reclamado em tempo hábil, após ser periciado, aquele seria mais um indigente a ser sepultado em cova rasa e, provavelmente seria mais um caso de crime arquivado e sem solução.
     O vozerio na calçada fez despertar um casal de velhinhos que morava no primeiro andar do prédio em frente. A janela de correr foi puxada, parcialmente, com todo o cuidado. A indecisão durou poucos segundos e mais uma vez a curiosidade sobrepujou o medo. Ela chegou primeiro à janela, e ele, logo a seguir. Agora juntos, lado a lado, estavam aqueles rostos massacrados pelo tempo, em busca da imagem violenta do cotidiano. O murmúrio não era nada esclarecedor, mas a vela acesa junto ao cadáver explicava parte do acontecido. Apesar do desejo dos dois em sair à rua, o bom senso acabou prevalecendo.
     - A noite está muito fria meu velho – disse ela. Amanhã, por certo, nosso porteiro nos dirá o que aconteceu.
     E depois de uma pequena pausa, perguntou:
     - Coitado, de que será que ele morreu?
     - Como sabe que é ele se o corpo está coberto? – perguntou o marido.
     - Presumo. Falei por falar. Se for uma mulher andando sozinha na rua, pela madrugada, não deve ser flor que se cheire...
     O marido não gostou da observação, mas preferiu não dizer nada. Pouco tampo depois, um dos policiais, a pretexto de inquirir um transeunte, descobriu o corpo do morto.
     - Não disse que deveria ser um homem? Comentou ela com o marido.
     - Um marginal – disse ele secamente.
     - Como você pode afirmar isso?
     - Não posso, mas é fácil de deduzir. Não vê que ele é escuro e tem cara de bandido?
     Na rua, em volta do corpo, a multidão foi crescendo, apesar do adiantado da hora. Não há nada como uma tragédia capaz de povoar uma rua pela madrugada. Uma senhora gorda, com os cabelos enrolados em bobs, e com a fisionomia de quem já havia dormido, perguntou:
     - Posso ver o rosto dele, seu guarda?
     - Por que a senhora quer ver? – perguntou num tom áspero.
     - É que meu filho ainda não chegou em casa e eu estou preocupada...
     - Seu filho é de cor parda?
     - Não – respondeu num tom mais para alívio que para indignação.
     - Então pode ficar descansada – completou o policial.
     Do bar da esquina saiu um homem embriagado. Levado pela curiosidade e por suas pernas trôpegas, foi juntar-se à multidão. Depois de empurrar algumas pessoas, foi empurrado também e quase caiu sobre o morto. No canto da boca trazia um cigarro apagado e amassado. Agachou-se com dificuldade e tentou acender o cigarro na chama da vela. Logo uma voz na multidão se fez ouvir:
     - Isso é falta de respeito! Tirem esse bêbado daí.
     - Ao que o bêbado retrucou:
     - Chiuuuu... Quem tinha que reclamar, não reclamou.
     Ouviram-se risos abafados. Um homem magro, alto e bem vestido, levantou o bêbado com uma das mãos e, gentilmente, acendeu seu cigarro.
     - Obrigado, distinto – agradeceu.
     Depois, puxou uma tragada com sofreguidão, olhou em direção do morto e logo a seguir para um dos policiais e perguntou:
     - Alguém já avisou a mãe dele?
     - Ele não tem documentos – respondeu o policial, irritado.
     E daí? Não tem nada a ver – replicou o bêbado. Eu perdi meus documentos e tenho mãe.
     Foi uma gargalhada geral.
     - Você já está ficando inconveniente. Mais uma piadinha e eu te levo em cana...
     - Só porque estou bêbado, ou porque estou sem documentos?    - Pelas duas coisas.
     - Essa não! Seria uma medida arbitrária e inconstitucional – falou com voz enrolada. Depois reclamam que as cadeias andam cheias. Pudera... Quem vocês devem prender, não prendem...
     Houve um murmúrio de aprovação, murmúrio esse que deixou irado o policial. Este, possesso, segurou o bêbado pela gola do paletó e o sacudiu várias vezes, gritando:
     - Cala essa boca aí, bêbado maluco! Vou já te botar dentro da patrulhinha e te levar pro Distrito...
     O homem magro e bem vestido voltou a interceder e, com muito custo, conseguiu afastar o bêbado do local, que saiu resmungando:
     - Deixa ele comigo.... Vou falar com meu tio que é general. Esse cara aí ainda vai responder por abuso de autoridade. Vocês vão ver...
     O casal de velhinhos acompanhou toda cena através da janela, agora totalmente aberta.
     - Boa coisa ele não deve ter feito – comentou o velho.
     - Quem, o bêbado? – perguntou a mulher.
     - Não, o bandido – respondeu ele. No mínimo tentou assaltar alguém que reagiu...
     - Bem, agora já não poderá fazer mal a ninguém. E mesmo que tenha sido o pior dos bandidos, sua alma merece uma oração.
     - Merece só, não. Precisa. – disse ele.
     - Vamos rezar juntos, meu velho?
     -E que mais podemos fazer?
     E fecharam à janela.
     A tal senhora com bobs nos cabelos encontrou uma vizinha na porta do prédio em que ambas moravam.
     - Homem ou mulher? – perguntou a vizinha.
     - Homem.
     - Bonito?
     - Não sei. Não me deixaram ver o rosto...
     - Por que será que mataram ele?
     - Ouvi dizer que transava tóxico e que não pagou a última entrega do bagulho...
     A madrugada foi ficando cada vez mais fria, mas ninguém arredava o pé de onde estava. O murmúrio de vozes era cada vez mais intenso.
     - Vamos tomar uma quentinha para comemorar – perguntou um jovem motoqueiro ao amigo.
     - Comemorar o quê? – perguntou o outro.
     - A morte do marginal.
     - Como sabe que o cara é um marginal?
     - Tu não se ligou no buchicho, cara? Disseram que o filho da puta do mulato assaltou um casal que namorava num carro. Depois tentou currar a gatinha. Uma louraça! Um avião! Aí ele começou a gritar por socorro e alguém de outro carro que ia passando pelo local, atirou no tarado. É a lei do cão, cara. A lei do cão.
     - É isso aí, mano...
     Em volta do corpo as vozes não cessavam.
     - Ouviu o que aquele policial falou? – perguntou o executivo que acabara de sair da boate com a amante.
     - Não – respondeu ela.
     - Bem – continuou o executivo – ele disse que não podia afirmar, mas que desconfiava que esse mulato fora um dos que havia tomado parte do assalto daquela agência bancária do Leblon...
     - Assaltaram o banco a essa hora? – perguntou com cara de idiota.
     - Não, bobinha. O assalto foi ontem à tarde. Agora ele deveria estar gastando o dinheiro que roubou...
     - Ladrão de banco, é? – Perguntou ao casal um senhor gordo e careca que ia passando e que escutou o diálogo.
     - E fichado – respondeu a mulher, prontamente.
     Conjecturas mil, e várias estórias diferentes rolaram de boca em boca, pela boca da madrugada. Apesar das diversas versões, houve um só veredicto: CULPADO.
     Ali, estendido sobre o cimento frio, coberto por um plástico cinza, orvalhado, não estava uma vítima da violência urbana e, sim, a própria violência. O céu começava a ficar vermelho, como de vermelho estava manchada a calçada quando o carro rabecão chegou, levou o corpo e desfez a multidão. Naquela manhã os jornais nada noticiaram. Não houve tempo útil entre a apuração e a publicação da matéria. Um dia depois, no entanto, a verdade, com todas as tintas, estampou os jornais. Não as verdades daqueles que haviam participado da vigília noturna, já que cada um pensava estar de posse da versão verdadeira. Mas a verdade pura e simples, sem retoques. E todos, sem exceção, acabaram lendo o que os jornais publicaram. Uns deram um maior destaque, exibindo foto ampliada. Já outros resumiram a matéria. Entretanto, os principais dados do trágico acontecimento não foram omitidos e ali estavam impressos:
     “José Azevedo dos Anjos, de 23anos, de cor parda, casado, pai de três filhos, morador na Rua das Flores, s/nº, em Vilar dos Teles, foi baleado e morto na madrugada passada ao sair da gráfica em que trabalhava em Copacabana. Na noite do crime, José resolvera fazer serão. Precisava ganhar um dinheiro extra para comprar remédios para sua mãe enferma que residia com ele. Dona Joselina, de 73 anos e cardíaca, ao tomar conhecimento da tragédia que acabou por vitimar seu filho caçula, passou muito mal e foi medicada no Hospital Souza Aguiar. Maria Aparecida dos Anjos, de 21 anos, esposa da vítima e grávida de sete meses, perdeu a criança ao saber da notícia. O GRAFICO José era um excelente profissional e muito querido por seus superiores e colegas de trabalho. Momento antes de ser assaltado e baleado mortalmente, ao sair da farmácia, recebera seu ordenado do mês, acrescido do extra que acabara de fazer. A polícia presume que ele tenha reagido ao assalto. Seu corpo será sepultado hoje, às 14 horas, no Cemitério do Caju.
     José Azevedo dos Anjos foi mais uma vítima da violência que assola a cidade do Rio de Janeiro”.       
                  



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DIRLA
Um conto de Angelo Romero


    Para o ser humano os “quases” sempre preocupa, causa dúvidas. É o momento intermediário e das indefinições da vida. É quando a pessoa é quase adolescente ou é ainda criança; quase adulto ou ainda adolescente, etc. Mauro vivia esse momento. Não sabia se já poderia se considerar adulto, ou ainda estava flanando nos anos dourados da adolescência. E para complicar, aos dezenove anos de idade atravessava um momento crucial de sua vida: seus pais estavam se separando.  Tinha decidido abandonar definitivamente os estudos e, por conseguinte, não sabia que rumo tomar. Quando criança, cansou de ouvir dos adultos a tradicional e imbecil pergunta: -“O que o neném quer ser quando crescer?” Como se uma criança tivesse alguma noção de responsabilidade. Geralmente, nessas oportunidades, a criança responde baseada na ocupação do pai ou dos seus heróis dos filmes e das histórias em quadrinho. Mauro, por exemplo, gostaria de ser o super-homem, pois poderia voar e resistir aos tiros das armas de fogo e, ainda por cima, exercer a profissão de seu pai: jornalista.

     Aos dezenove anos ele queria ser artista, mas, além de não estar preparado para o ofício, não sabia como começar. Longe dos bancos escolares, o jovem só se ocupava com as namoradas e com os jogos de futebol com os amigos do bairro. Tal situação passou a preocupar o pai. Como em seu tempo o adolescente não recebia mesada, resolveu ele arranjar um emprego qualquer com três únicos objetivos imediatos: passear com as namoradas, comprar cigarros para alimentar o vício e comprar uma lambretta para se locomover rapidamente, tendo veículo próprio. Diga-se de passagem que a “lambretta”, uma motoneta italiana, era o veiculo da moda para os adolescentes que vivenciavam o especial momento de mudança de costumes com o rock’in roll e a “Jovem Guarda”.

    Mesmo preocupado com um veículo de duas rodas, ou seja, feito para cair, o pai aceitou ser fiador. É fato mais que constatado tal comportamento de pais que estão se separando: presentear os filhos como forma de compensação.  A Lambretta adquirida veio amenizar, de certa forma, a dor e a preocupação com seu futuro em face da separação iminente dos pais. A mãe, traumatizada e inconformada com os acontecimentos, resolveu viajar de férias para Pernambuco, sua terra natal, em busca de um ombro amigo para chorar. O pai, aproveitando a ausência da mulher, passou a só ir em casa para pegar roupas. Assim, de uma hora para outra, o jovem passou a se sentir órfão de pais vivos e totalmente desamparado, tanto sentimentalmente, como materialmente. Sem ter quem lhe ajudasse nas tarefas da casa, logo aprendeu a cozinhar o trivial e a forrar a própria cama.

    E a verdadeira história começa aqui, num domingo chuvoso, depois desse longo preâmbulo.

    Em vista da chuva, Mauro resolveu passar o domingo em casa. Sair de Lambreta debaixo de chuva não fazia o menor sentido, nem suas namoradas (tinha mais de uma) topariam sair para um programa assim.  E aí surgiu o dedo do destino que mudaria todo o quadro da solidão que já ocupava todos os cômodos da casa.

    Entre seus principais amigos, Jorge “Garrafa”, que possuía tal apelido por ter um porte físico no feitio de uma garrafa, apareceu em sua casa ao final do tal domingo. Era um tipo criativo, gozador e com grande presença de espírito. Foi logo entrando e dizendo: “Vamos passar uns trotes ao telefone, para aproveitar o fim desse domingo chuvoso? Mauro logo aprovou a ideia. Combinaram de inventar um programa de rádio que apresentasse uma seleção de gravações de Cauby Peixoto, o cantor do momento. Selecionaram os discos, ligaram a aparelhagem de som, abriram o catálogo telefônico e sortearam um assinante qualquer. Ambos possuíam qualidades de fazer vozes diferentes e bem impostadas. A ideia era fazer perguntas sobre Cauby, e cada resposta certa daria direito ao ouvinte ser premiado com um disco do cantor. Resumindo: Logo na primeira ligação, ouviram uma voz de mulher, grande admiradora de Cauby. O trote foi tão perfeito que não foi dado, a ela, tempo de sair do telefone para ligar um aparelho de rádio e conferir a ligação. É claro que, depois de certo tempo a mulher entendeu que fora vítima de um belo trote, mas, gostando do papo. estendeu a ligação. Ao final, trocaram nomes, telefones e endereços.

    O tempo passou e Mauro já não se lembrava do trote quando seu telefone tocou e ele foi atender. Era a tal mulher, vítima do trote.

    - Não está lembrando de mim? Sou a Dirla do seu trote, Mauro. Estou louca para lhe conhecer pessoalmente e se quiser me receber, poderei ir até a sua casa amanhã.

    E ao final da ligação, ela completou:

    - Existe um probleminha e não sei se você vai gostar de mim. Eu sou mulata.

    Imediatamente, Mauro respondeu:

    - Isso não é problema, é solução.

    No dia seguinte, na hora marcada, Mauro ouviu palmas no portão. Ao invés de sair para receber a visita, Mauro resolveu conferir a criatura através das frestas da janela. Se fosse feia, fingiria que não estava em casa. Entretanto, não era uma mulata comum, era uma escultura moldada pelos deuses. Poderia perfeitamente fazer parte do elenco das mulatas do show do saudoso Sargenteli, famoso produtor de televisão da época. Resumindo mais uma vez, ao final da visita, Mauro perguntou:

    - Está trabalhando?

    - Trabalho como doméstica para um casal de portugueses e moro no emprego. Eles têm uma fábrica nos fundos da casa e como viajam muito para Portugal, eu, quando eles estão fora, tomo conta da casa e dos empregados da fábrica.

    - E quantos eles te pagam?

    O valor era bem acima do que normalmente era pago a uma doméstica. Mesmo assim, Mauro propôs:

    - Minha mãe precisa de uma empregada. No momento eu estou só e ela está em Recife, Pernambuco. Gostaria de contratá-la e fazer uma surpresa para mamãe, mas só podemos pagar a metade do que você ganha.

    No dia seguinte, Dirla chegou com malas e bagagem.

    Naquele dia Mauro não precisou cozinhar macarrão, nem fritar ovo. Almoçou e jantou pratos variados e saborosos. Dirla, para completar, era cozinheira de forno e fogão.

    Depois do jantar, Mauro improvisou um baile para um único casal, com gravações de Cauby Peixoto. Para criar um clima de boate, colocou uma lâmpada vermelha no abajur da sala e preparou algumas doses de Cuba Libre, a bebida do momento.

    O sucesso do baile foi comemorado na cama de casal, que há muito não estava sendo usada por seus reais ocupantes. O homem que ainda não fez sexo com uma mulata, não sabe o que é sexo. Mauro soube naquela noite e provavelmente, os vizinhos também, ao imaginaram a intensidade do ato, mediante os fortes gemidos.

    A mãe de Mauro se surpreendeu favoravelmente. Acostumada a ter sempre em casa uma boa doméstica, logo percebeu que aquela havia sido, até então, uma das mais completas.

    A bem da verdade, Mauro obteve maior lucro e vantagem. Enquanto sua mãe era bem atendida nos quitutes da mesa, ele usufruía, diariamente também, das melhores e saborosas posições do Kama Sutra, na cama. E assim, durante três longos anos, os três se completaram de forma diferente, porém intensa.

    Mas não há mal que sempre dure nem bem que não se acabe. O quarto de dormir de Dirla, visitado por Mauro todas as noite, além de sua cama visitada por Dirla durante o dia, quando da ausência da patroa, fôra construído separado da casa, no fundo do quintal.  Era desconfortável e quente para o verão do Rio. E certa madrugada de calor intenso, os amantes resolveram inovar. Fariam sexo deitados sobre a terra fresca pelo orvalho da noite, sob a frondosa mangueira e o luminoso prateado da lua cheia. O novo cenário tornou-se tão estimulante e romântico que acabou proporcionando um, sexo alucinante composto de frenesi e gemidos fora de controle.  Só que os gemidos descontrolados chegaram aos ouvidos da mãe de Mauro, acordando-a. Quando ela abriu a porta da cozinha que dava para o quintal, não acreditou no que viu. A bunda prateada do filho subia e descia em ritmo alucinante, sobre uma escultura mulata que, de forma intensa e também retimada, proporcionava tal movimentação.

    A mãe do jovem, depois de beber um copo de água açucarada, esperou o amanhecer para despedir, por justa causa, uma de suas melhores empregadas. E bota justa causa nisso.

    Dias antes Dirla havia comprado “Lancaster”, famoso perfume argentino, e impregnara o lençol da cama de Mauro com aquele maravilhoso aroma. Quando, ao final daquela semana a mãe do rapaz quis trocar a roupa de cama de toda a casa para lavar, Mauro não deixou que retirasse o lençol que forrava a sua cama. E para impedir que tal acontecesse, sempre que se ausentava da casa, ele trancava a porta de seu quarto e levava consigo a chave.  Já que não poderia ter Dirla em seus braços, que ao menos o perfume, que de seu corpo irmanara, ficasse com ele até que o tempo se encarregasse de dissipá-lo.

    A imagem de Dirla ficaria gravada em sua lembrança pelo resto da vida, mas o perfume daquele corpo escultural se desfez por completo na Brastemp, máquina de lavar roupas da casa.  O responsável pelo grande desgosto do rapaz foi o chaveiro contratado por sua mãe.  




HORÓSCOPO DO DIA
Um conto de Angelo Romero


          O serviço meteorológico previa uma frente fria com chuvas esparsas, para o Rio de Janeiro, no início da semana. Como domingo é o primeiro dia da semana e, pouca gente sabe disso, esta estória aconteceu nos dois primeiros dias daquela semana de junho.

          Para quem só consegue despertar com o toque repetitivo e irritante do despertador, temos que convir que, para estes, o som não é dos mais agradáveis. Na noite anterior, a convite da amiga Eleonor, Juvenal havia participado de uma noite de queijos e vinhos. Ele, que só gostava de queijo de Minas a "La Romeu e Julieta", ou seja, acompanhado de goiabada, provou, comedidamente, de alguns tipos de queijo por pura educação. No entanto, fazendo jus ao apelido de "Seca Garrafas", que recebera dos íntimos, dos vinhos provara todos: tinto, branco, verde e rosé, de diversas marcas e em quantidade generosa. Resultado - antes da meia-noite, as garrafas estavam secas e sobrava queijo. Percebendo o ar de decepção que Juvenal não conseguiu esconder, Eleonor, a anfitriã, sugeriu que abrissem um garrafão de vinho tinto, sem rótulo e de qualidade duvidosa. Assim, a noite foi prolongada até às duas da manhã, ou melhor, até a última gota do vinho do garrafão.

          Bem, assunto não faltou, mas a relação entre Eleonor e a astrologia era tão intensa, que além de ter sido o tema predominante, foi o que provocou as discussões mais acirradas. Apaixonada que era, a anfitriã não conseguiu esconder o estado de excitação em que se encontrava, ao versar sobre o assunto. No início, contida, emitia o som firme na voz. Aos poucos foi se descontrolando. Perdera o controle dos músculos e nervos. Estava ofegante. O corpo tremia e a pele transpirava. Por vezes emitia a voz em falsete, como se estivesse gemendo de intenso prazer.

          - Por Deus, gente! Existem embusteiros, pessoas despreparadas que são pagas para escrever besteiras nos jornais. Assim como a matemática, astrologia é uma ciência perfeita! - falou e gemeu.

          Preocupado, um dos convidados procurou mudar de assunto. Tentou evitar que a anfitriã e amiga chegasse a ter orgasmos múltiplos ali, diante de todos.

          Para Juvenal, astrologia seria o último tema do mundo para ser discutido. Por não entender, não acreditava. Por não acreditar, não entendia. Assim, absorto, a tudo ouvia calado. Trocara o cálice por uma caneca e o desconforto do assunto, pelo prazer que o vinho lhe causava.

          Empolgada, Eleonor custou a se dar conta do silêncio de Juvenal. Ao fitar o convidado, que parecia mais ausente que chuva na caatinga, perguntou:

          - E você, Juvenal, o que me diz disso tudo?

          - Excelente! - respondeu ele.  Este vinho é da melhor qualidade.

          - Não, querido - ponderou ela delicadamente - estou falando sobre astrologia.  Qual é o seu signo?

          - Sou espada e todo mundo sabe disso.

          Eleonor sorriu amarelo, mas resolveu insistir:

          - Em que dia e mês você nasceu?

          - Sete de julho. Daqui a duas semanas. Por quê? Vai me dar algum presente?

          Todos riram menos Eleonor, que se sentiu ofendida com a brincadeira grosseira.

          Com ajuda do seu anjo da guarda, Juvenal chegou à sua casa são e salvo. Sim, porque, por ter bebido além da conta, atravessara em alta velocidade todos os sinais de trânsito (semáforo para os paulistas) dos mais perigosos cruzamentos, que para ele estavam verdes. Ah, aquele vinho verde estava delicioso - pensou ele.

          Logo ao entrar, Juvenal programou o despertador para tocar às onze horas da manhã. Afinal, o primeiro compromisso que teria segunda-feira, estava marcado para as duas da tarde. Descalçou os sapatos e dormiu com a roupa que chegara da rua. Mas não foi um sono tranquilo. Acordou diversas vezes durante a madrugada. Teve um pesadelo sem sentido, como costumam ser os pesadelos, mas extremamente fiel ao enredo: astrologia.

          Logo de cara, NETUNO, coitado, agonizava vítima do vendaval que varria o oceano. Na certa o SOL não estava em aspecto positivo com ELE. Depois, era ele próprio, Juvenal, que quase morreu afogado dentro de um AQUÁRIO cheio de PEIXES. Ao livrar-se do AQUÁRIO, preocupou-se com os GÊMEOS, filhos da vizinha do andar de baixo. Haviam sido mordidos por um ESCORPIÃO. De repente, Juvenal viu-se diante de uma casa de câmbio, tentando trocar todo o seu salário por LIBRA, e não se conformava com o fato. Por que não dólar, perguntava. O BIG BEN não lhe despertava o menor interesse. Mas, em compensação, não via a hora de apostar todo o seu dinheiro nas roletas de ATLANTIC CITY.

          A última etapa do pesadelo foi a mais interessante.  Estava agora no hall de um hotel, 5 estrelas, sem um tostão no bolso, diante de Clarisse, a mulher que mais desejava na face da terra.

          Para ela, Juvenal lhe era totalmente indiferente. Certa vez, numa conversa informal, Clarisse havia lhe dito que era de VIRGEM, e ele não dera a mínima importância ao fato. Agora, ali estava ela, diante dele, amável, provocante e perigosamente acessível. Se era virgem ou não, continuava a ser detalhe de somenos importância. Seria agora ou nunca. Sem dinheiro para sequer um simples apartamento, pensou em fazer sexo com ela ali mesmo, no hall do hotel. Naquele momento, o movimento de entrada e saída de hóspedes era intenso, mas Juvenal só tinha olhos para Clarisse. Bem, olhos e tudo o mais que pulsava dentro da roupa que começava a despir com extrema rapidez. Ofegante, ardendo de desejo, Clarisse despia-se de forma sensualíssima. Quando segundos e centímetros os separavam do contato físico, eis que Juvenal sentiu uma dor aguda e dilacerante nas costas. Havia sido chifrado por um TOURO alucinado. Para completar o drama daquele amante, em potencial, surgia a poucos metros de distância à sua frente, um LEÃO, com expressão faminta. Pior que a dor que sentia, foi o inconformismo com a situação. Como podem permitir a entrada de animais ferozes num hotel 5 estrelas? - perguntava a si mesmo.

          Tão estranho quanto a presença daqueles animais, foi a aparição, sabe lá vindo de onde, de um caçador inglês trajando aquele indefectível uniforme caqui, com um bermudão até os joelhos, com meiões em xadrez, cobrindo as incolores canelas, e portando um fuzil de caça, com luneta e tudo. Foram dois tiros certeiros. Um para cada animal. Se ridícula era a indumentária, o mesmo não se podia dizer com relação à pontaria do inglês.

          O pânico fez evacuar o hall em segundos, mas Clarisse permaneceu ali, no mesmo lugar, com o olhar lânguido e o corpo nu, estendido num sofá oval. Como em sonho tudo é possível, Juvenal, surpreendentemente, mantivera a ereção. E quando tudo parecia caminhar para um "happy end", eis que nosso herói é sacudido por um insistente toque de campainha. Ele ainda pensou que o groom estivesse sendo chamado pela recepção do hotel para carregar malas e, só no quinto toque foi que veio a se lembrar do seu despertador. Não, não existe sonho com final feliz. Ou acaba mal ou é interrompido, o que não deixa também de ser frustrante.

          Ao ultrapassar os segundos que precedem sonho/realidade, Juvenal percebeu que as pálpebras pesavam, a cabeça doía e o sabor acre-amargo impregnava sua boca provocando náuseas. A imagem de Clarisse desaparecera por completo. Ficou apenas a lembrança - doce lembrança. Revoltado, tentou silenciar o despertador com um murro. Não conseguiu. Nem podia, ele, o despertador, estava tão silencioso quanto taquigrafa de tribunal de júri. Afinal, fora programado para tocar às onze, e ainda eram seis horas da manhã. Foi aí que Juvenal achou por bem atender ao telefone.

          - Estava dormindo?

          Uma pergunta imbecil, feita numa hora imprópria, mas como a voz era de seu patrão, resolveu responder:

          - Estou.

          - Pois trate de acordar e levantar depressa. O compromisso que estava marcado para as duas da tarde foi antecipado para às oito da manhã. Mister Jones, apesar de ser americano, é britânico quando se trata de horário. Se acha que vai se atrasar, é melhor não ir. Telefone e tente remarcar o encontro. Se chegar antes da hora combinada só dê as caras às oito em ponto. Lembre-se de que se atraso quer dizer impontualidade, antecipar-se ao horário é descortesia e falta de educação. De uma coisa esteja certo: se perder esta venda, estará perdendo a maior comissão de sua vida!

          Juvenal era o melhor corretor de imóveis da "IMOBILIÄRIA PADRÃO LTDA". Especializado na venda de mansões, sítios e fazendas. Deveria vender a Mr. Jones, milionário americano, residente em São Paulo, uma suntuosa mansão na Barra da Tijuca, pertencente a um dono de uma rede de supermercado.

          Extremamente metódico, ele jamais alterou a ordem do que fazia após despertar: lavar o rosto, escovar os dentes, beber um copo d'água, em jejum, fazer xixi, tomar uma xícara de café forte e fumar o primeiro cigarro do dia, enquanto passava a vista nas principais manchetes das seções de economia, política, esporte e variedades do jornal do qual era assinante. O dia, para ele, começava realmente após cumprir esta primeira etapa.

          Naquela manhã de segunda-feira, Juvenal teve que alterar a rotina. Lavou o rosto, escovou os dentes, fez a barba e o xixi no box, enquanto tomava banho. Vestiu a melhor roupa e aproveitou o copo d'água que costumava beber em jejum, para engolir um comprimido para dor de cabeça. Não bebeu café, não fumou, e o jornal que tinha pego sobre o capacho do corredor de entrada do apartamento, atirou-o sobre a espreguiçadeira, sem sequer ter lido a manchete da primeira página, e saiu.

          Na garagem do prédio, ao entrar no carro, ficou duplamente surpreso: primeiro porque ele estava estacionado na vaga do síndico; depois, porque ao girar a chave na ignição o motor pegou de primeira, coisa que raramente acontece com carro a álcool quando está frio. Talvez por isso tenha tido um bom pressentimento: "apesar da ressaca, este vai ser meu dia de  sorte" - pensou.

          No dia anterior, domingo, na redação do jornal do qual Juvenal tinha assinatura, acontecera um fato curioso. Roberval Matias, o jornalista designado para escrever o horóscopo diário e em cuja coluna assinava com o pseudônimo de MADAME X, não apareceu para trabalhar. Quando o redator-chefe se deu conta da ausência, entrou em pânico. Afinal, dali a menos de uma hora a matéria deveria estar sendo impressa. O berro do redator-chefe fez silenciar máquinas e computadores da redação:

          - Tem alguém aqui tão idiota que seja capaz de escrever um horóscopo?

          - O silêncio aumentou, se é que se pode aumentar o silêncio.

          Casualmente, naquele momento, Mirinho, o contínuo, acabara de entrar no salão para servir cafezinho e alguém sussurrou em seu ouvido:

          - Aproveita a oportunidade, cara. Vai lá e se apresenta.

          - Está maluco?! Quer que ele me demita? - respondeu ele.

          O sussurro chegou aos ouvidos do redator-chefe que voltou a berrar:

          - Quem falou aí?

          Novo silêncio.

          - Jornalista na redação é como soldado no quartel. Se não aparecer um voluntário, vou escalar qualquer um e, ai desse que não redigir o horóscopo direitinho!

          Bem, para encurtar a estória, logo, logo o redator-chefe tomava conhecimento de um fato que durante anos vinha sendo mantido em segredo: Roberval Matias jamais havia escrito um horóscopo sequer em toda a sua vida. MADAME X, na verdade, era Mirinho, o contínuo. Ele ganhava uns trocados do Roberval. A este cabia consertar os erros de português e passar o texto para a impressora.

          O novo berro do redator-chefe misturava surpresa com indignação:

          - Mirinho?! Nem pensar. Aliás, a partir de agora ele vai estar dispensado. Chega de cafezinho por hoje.

          E dirigindo-se a Mirinho, acrescentou com ternura na voz:

          - Pode ir pra casa mais cedo, meu filho. Aproveite o domingo e vá almoçar com a patroa.

          A bomba foi estourar nas mãos de seu Alberto, o jornalista mais antigo do jornal, ali presente. Era ele o responsável pela redação dos obituários e parte do noticiário policial. Era o castigo que recebia por ter revelado o segredo de MADAME X.

          - Seu Alberto, venha aqui na minha sala. Gostaria de ter uma conversinha com o senhor.

          Ao entrar na sala do redator-chefe, Alberto ouviu cobras e lagartos.

          - Ficou maluco? Como pôde me indicar o Mirinho para escrever o horóscopo?  Amanhã ele diz que sempre foi o responsável pela coluna, arranja algumas testemunhas, aciona a Empresa, recebe uma baita indenização e acaba se aposentando como jornalista. Já pensou? E acrescentou: O senhor tem trinta minutos para redigir o horóscopo de amanhã, e estamos conversados.

          A segunda-feira amanheceu nublada com ameaça de chuva a qualquer momento. O Chevrolet Opala de Juvenal parou no sinal do terceiro cruzamento e não andou mais. Depois de tentar algumas vezes ligar o motor girando a chave na ignição, saltou do carro e empurrou para junto do meio-fio. Falando assim, parece tarefa simples, mas não foi. O Opala é um carro pesado e ninguém o ajudou, pois naquele momento, a chuva desabou com intensidade. Por possuir noções de mecânica, Juvenal abriu o capô e fez uma inspeção rápida, porém minuciosa. Tudo parecia estar em perfeita ordem. Menos, é claro, o tanque de combustível que ele esquecera de abastecer no domingo ao deixar a casa de Eleonor. Por não ter um posto nas proximidades, nem tampouco um vasilhame para comprar o álcool, Juvenal resolveu abandonar o veículo. Antes, porém, colocou o triângulo de segurança a cinco metros da traseira do carro. Tentou pegar um táxi, mas naquela hora e debaixo daquele aguaceiro, só milagre. Os poucos que passavam, ou estavam ocupados ou não paravam. Foi aí que se lembrou de atravessar a rua e tentar pegar um táxi na outra alameda, em sentido contrário ao rush. A tentativa pareceu dar certo, pois três minutos depois estava dentro de um táxi.

          - Pra onde vamos? - perguntou o motorista

          - São Conrado - respondeu Juvenal.

          - Negativo - falou o motorista, ao mesmo tempo em que apertou o pedal do freio. Trabalhei a noite toda e estou recolhendo o carro para a garagem. Pensei que o senhor fosse para a zona norte.

          - Quanto o senhor quer pra me levar em São Conrado?

          - Nem o senhor pagando em dólar na bandeira dois eu posso levar. O que eu quero mesmo é que o senhor salte porque eu já estou atrasado.

          Juvenal apelou:

          - E se eu falar com um guarda?

          - Bem, se o senhor encontrar um guarda por aqui, a esta hora e com toda esta chuva, não vai nem precisar falar com ele - eu levo o senhor.

          Juvenal, ao saltar, esperou que o táxi arrancasse em disparada, para sorrir. Mesmo vivendo todo aquele drama teve que reconhecer a espirituosidade daquele mau profissional do volante. Afinal, estavam no Rio de Janeiro e aquele deveria ser um carioca típico.

          Agora, além da forte chuva, um vento desgovernado espalhava água por todas as direções, a um só tempo. Procurou abrigo sob uma marquise e continuou a observar os carros que passavam. Como milagre às vezes acontece, eis que a seu lado, sobre a calçada, surge um táxi, livre, que havia subido a rampa do prédio cuja marquise o abrigava.

          - Será que o senhor poderia me levar a São Conrado? - perguntou em voz de súplica. Além da bandeirada eu lhe darei uma gorjeta gorda.

          - É pra já, chefia. Coloque o cinto de segurança, não fume e deixe o resto comigo - respondeu o motorista.

          O trânsito estava caótico, coisa de louco! Por diversas vezes tiveram que mudar o itinerário para fugir dos engarrafamentos, mas 40 minutos depois já estavam passando por Copacabana. Agora tudo parecia correr às mil maravilhas! A chuva havia parado, o sol despontava por entre as nuvens e o trânsito fluía razoavelmente. De repente, o motorista parou o carro junto ao meio-fio.

          - Lamento, chefia, mas vou ter que ficar por aqui.

          - Como ficar por aqui?

          - O pneu da frente furou e eu estou com o macaco quebrado. Se o senhor quiser esperar que alguém me socorra...

          Como ninguém parava para socorrê-los e outro táxi livre não passava, Juvenal resolveu pegar um ônibus com destino ao Vidigal. Foi uma viagem emocionante! De cara, o ônibus arrancara bruscamente, avançara um sinal fechado e fizera uma curva em alta velocidade. Parecia que o motorista abandonara a Formula I para dirigir veículo coletivo por pura emoção! Aproximadamente a três quilômetros do Hotel Sheraton, local do encontro, Juvenal olhou para seu Rolex de pulso pela última vez: marcava dez minutos para às oito. O ônibus já não estava tão cheio. Só ele e mais três passageiros permaneciam de pé. Agora ele estava certo de que chegaria na hora marcada. E quando, em silêncio, agradecia aos céus por ter colocado ao volante daquele veículo um louco e irresponsável para conduzi-lo, eis que uma voz esganiçada de um negão, ao lado do motorista, chega aos seus ouvidos:

          - Ninguém se mexe. É um assalto.

          Juvenal olhou para a parte traseira do coletivo e um mulato sentado no último banco, confirmou:

          - É isso aí, "Tio", tô com meu parceiro.

          Apesar de cercado por duas poderosas armas de fogo, Juvenal surpreendeu a todos, inclusive aos assaltantes, quando pronunciou em voz alta e firme um pequeno discurso:

          - Se tiver alguém armado, que não reaja, pelo amor de Deus! Os rapazes aí são vítimas do desemprego, da má distribuição de renda, do descaso da sociedade e das autoridades governamentais voltadas apenas para os grandes interesses internacionais. Vamos colaborar com os rapazes. Quero ser o primeiro. Falou e foi logo tirando do pulso o Rolex, da mão o anel de grau, do pescoço o cordão de ouro e do bolso a carteira de dinheiro. E, para finalizar, acrescentou:

          - Desculpem, mas esqueci em casa o talão de cheque e os cartões de crédito. A quem posso entregar a mercadoria?

          - Põe aí no chão - orientou o negão.

          Juvenal procurou negociar:

          - Já que fui o primeiro a colaborar, solicito um favor de vocês. Deixem-me saltar, por favor! Tenho um compromisso agora, às oito horas, no Hotel Sheraton e, se faltar, serei mais um desempregado, assim como vocês.

          O negão voltou a falar:

          - Tu tá no seu dia de sorte, "Sangue Bom". Vamos te dispensar. Mas se bancar o esperto e denunciar a gente pros homens, tu tá ferrado. Já te fotografamos, e quando a gente se encontrar, tu vai virar presunto.

          Ao receber a ordem do negão, o motorista arrancou com o ônibus e só foi parar em frente ao "Sheraton". Quando a porta traseira foi aberta, Juvenal saiu em disparada. Às oito e quinze estava na recepção do hotel.

          - Meu nome é Juvenal Ferreira e tenho encontro marcado com o Sr. James Albert Curtis, hóspede da suíte 03. Poderia me anunciar?

          O Sr. Curtis acabou de deixar o hotel e pediu-me que lhe entregasse este envelope.

          O bilhete estava escrito em inglês, mas Juvenal entendeu: - "Não pude esperá-lo. Precisei retornar a São Paulo antes do horário previsto. Continuo interessado no negócio. Volto na semana que vem e, assim que chegar, entro em contato. Atenciosamente, James."

          Dos males, o menor - pensou Juvenal. Fecharia o negócio no próximo encontro, e disso ele tinha certeza.

          Dali mesmo, da recepção do Sheraton, ele telefonou para a "IMOBILIÁRIA PADRÃO" e, em três minutos, resumiu para o patrão todo o drama que acabara de passar. Este, penalizado, resolveu mandar seu motorista particular para pegá-lo.

          O engenheiro Paulo Carneiro, Diretor-Financeiro e sócio majoritário da "Imobiliária Padrão", era um homem de humor inconstante, duro, calculista, sisudo, como costuma ser determinado tipo de pessoa que veste couraça para proteger-se de sua própria fragilidade. No fundo, no fundo, Dr. Paulo não passava de um ser sensível e extremamente sentimental. Ele admirava Juvenal e tinha consciência de sua importância para a Empresa. Ao recebê-lo, em seu gabinete, falou:

          - Sua aparência está péssima! Parece que foi vender barracos no morro do Vidigal. Cancele os demais compromissos de sua agenda, para hoje, e tire o resto do dia de folga. Vá para casa, tire esta roupa nojenta e tome uma boa ducha. Você irá se sentir melhor. E completou, entregando a Juvenal, um cheque assinado: - Como não temos dinheiro vivo na Empresa, desconte este cheque e fique tranquilo - o valor não será descontado do salário nem de suas comissões. É uma espécie de bônus pelo prejuízo que teve, e pelo susto que passou. E não me agradeça não, porque não estou fazendo favor - é uma forma de investimento.

           E mais não disse porque não foi preciso. Mas, apesar de dispensado, Juvenal aproveitou o resto daquela manhã para por em dia alguns papéis que se acumulavam em sua mesa.

           Ao meio-dia, deixou o prédio da Empresa, descontou o cheque e entrou numa lanchonete. Estava faminto! Depois de lanchar, entrou num táxi e rumou em direção ao local que havia deixado seu automóvel. Automóvel? Que automóvel? Não, não havia nada parecido com o seu Opala que ele deixara ali, estacionado junto ao meio-fio. Entrou em pânico! Afinal, o seguro do carro estava vencido e ele não tivera tempo de renovar. Lembrou-se do amigo Gastão, detetive da polícia civil e resolveu telefonar-lhe. Como estava sem ficha para o telefone público, entrou no botequim da esquina e pediu para fazer a ligação. Gastão não estava nem em casa nem na Delegacia e, em vista disso, resolveu deixar o recado nos dois locais. E quando foi pagar o telefonema, ouviu do lusitano, dono do bar, palavras tranquilizadoras:

          - Desculpe Doutor, mas não pude deixar de ouvir sua conversa. Seu carro é um Opala azul-marinho, com chapa de Petrópolis?

          - Era.

          - Não se preocupe. Ele não foi roubado não. Foi rebocado pelo DETRAN.

          Além dessa informação, o português ainda lhe deu todas as coordenadas de tudo o que teria que fazer para recuperar o veículo. Resultado: novo táxi, novo endereço e o pior, novas despesas.

          Depois de comprar o formulário na papelaria, enfrentar enorme fila na agência bancária para pagar a multa e o reboque, Juvenal viu-se diante do seu carro, no terreno do DETRAN. Pior do que sentir a falta de seu toca-fitas auto reverse e dos dois espelhos retrovisores externos, foi lembrar-se de que estava sem combustível. Um "flanelinha", agente associado ao policiamento ostensivo do trânsito, que estava de plantão no local, logo se apresentou para resolver o problema, mediante a cobrança de uma pequena taxa. Em fração de segundos, reapareceu o administrador do espaço público com sua indefectível "flanela" em volta do pescoço e um vasilhame numa das mãos. E foi aí que Juvenal percebeu que o posto de gasolina mais próximo do terreno do DETRAN não era tão próximo assim.

          De volta ao posto, agora na direção de seu carro, Juvenal pensou em mandar encher o tanque. Pensou apenas, pois o dinheiro que sobrara mal dava para uns quatro ou cinco litros, no máximo. Assim, a volta ao lar não foi tão tranquila quanto desejava nosso herói. A chuva voltou a cair com intensidade. Com o temporal, alguns pequenos acidentes de trânsito aconteceram e, aliados ao impedimento de alguns trechos para obras da Companhia Telefônica, fez provocar engarrafamentos em boa parte do trajeto. E durante todo o percurso ele rezou, rezou muito para que o combustível desse para chegar em casa. Bem, na verdade, o álcool só acabou a poucos metros do prédio em que morava.

          Severino, porteiro do edifício, apesar do temporal, ajudou Juvenal a empurrar e a estacionar o carro na vaga da garagem.

          Já entrou no apartamento espirrando, com a garganta ardendo e o corpo levemente febril. Na secretária eletrônica havia apenas um recado. Era a Ritinha, sua namorada de longa data: - "fiquei até às três horas da tarde sentada no restaurante, que nem uma idiota, esperando por você para almoçar. Se não encontrar uma desculpa bastante convincente, é melhor me esquecer".

          Juvenal tinha esquecido o compromisso. Também, pudera!

          Depois de tomar uma boa ducha de água morna, colocar o pijama, beber um café forte, nosso herói estendeu o corpo na espreguiçadeira para, enfim, ler o jornal e fumar o primeiro cigarro. Não o primeiro cigarro do dia, é claro, mas o primeiro cigarro do segundo maço. Movido por uma curiosidade quase doentia, Juvenal começou a leitura do jornal, justamente pela coluna que jamais dera a mínima importância: o horóscopo do dia de MADAME X, que dizia: - CANCER: O sol em aspecto negativo com NETUNO lhe trará problemas no campo social e profissional. Evite pequenas viagens e não conduza veículos automotores. Terá problemas de desencontros, tanto no terreno profissional quanto no campo afetivo. Tenha mais cuidado com sua saúde que está fragilizada. ASCENDENTE: Esteja mais atento para a vida a dois. Você será mais cobrado e terá que buscar mais equilíbrio entre seus direitos e as necessidades dos outros".

          Por via das dúvidas, daquele dia em diante, Juvenal jamais saiu de casa sem antes ler seu horóscopo. O que ele nunca soube, na verdade, é que o horóscopo que tanto o impressionara, não havia sido escrito por Mirinho, o contínuo, e sim, por um jornalista idiota qualquer, que jamais havia escrito sobre aquela matéria científica. Se soubesse o que tinha acontecido, na certa Juvenal teria dito: "Ah, por que não deixaram o Mirinho escrever o horóscopo de segunda-feira. Se fosse dele a redação, eu tenho certeza que não teria um dia tão azarado!"





APOSENTADORIA COMPULSÓRIA

Um conto de Angelo Romero




     Tavico (Otávio dos Santos Pereira Jr.), sempre foi tarado por fotografia. Quando criança, folhear álbuns de fotos da família, nas horas vagas, era a sua melhor diversão. Enquanto acreditou na existência de Papai Noel, pedia sempre em suas cartas, uma máquina fotográfica no natal. Não era fácil para o seu pai, pequeno funcionário dos Correios e Telégrafos, se desculpar pelo velho Noel, explicando ao garoto que ele era jovem demais para lidar com objeto tão complicado. Tavico aguardava o Natal a cada ano com maior ansiedade. Ao completar seis anos de idade rompeu definitivamente com Papai Noel. Começou a desconfiar que o velho jamais existira. – Como poderia o correio, que extraviava constantemente as cartas de seus parentes do Rio para Recife e vice-versa, entregar as suas cartas a um cara que sequer tinha endereço certo? E Tavico começou a viajar: - primeiro, da ilusão para a revolta; depois, da desconfiança para a certeza, até que chegou ao fim da viagem: a vingança. Foi aí que Tavico começou a espalhar para todas as crianças do bairro a sua grande descoberta: - Papai Noel é uma figura imaginária. Um vermelho. Um perigoso agente comunista. Não um agitador profissional, mas um cretino com cara de bom moço e uma falsa expressão de candura na face para iludir as crianças. Para prometer aos pobres coisas que jamais poderia cumprir. E, nós adultos, que sempre pensamos ser Papai Noel um agente do capitalismo, ficamos tremendamente preocupados com mais uma descoberta infantil.
     Ao completar oito anos, Tavico ganhou de presente de seu avô sua primeira máquina fotográfica, uma Kodak caixão. Foi uma loucura total! Daí em diante passou a pedir filmes de presente a todos os seus parentes. Sua avó era quem mais o abastecia, e haja filmes, porque o Tavico fotografava tudo o que via. Dos treinos do Mengão, na Gávea, a desastres de trânsito, hoje tão frequentes, sua  máquina ia registrando tudo.
     Um dia, pensando em ganhar um prêmio de originalidade, fotografou uma menina do pré-primário agachada, fazendo xixi no pátio da escola e ganhou uma suspensão de uma semana sem direito a recreio, mais uma reprimenda por escrito com lápis vermelho no seu boletim. Foi sua primeira decepção como fotógrafo.
     O tempo foi passando, Tavico crescendo e com ele crescendo também o seu ideal. Tirou um curso de fotografia por correspondência, pago por sua mãe, e ao aprender a medir distância, trocar lentes, abrir e fechar diafragmas acreditou que já era um fotógrafo de mão cheia. Esqueceu-se, porém, que sua Kodak, modelo caixão, tinha poucos recursos. Tentou arranjar emprego como fotógrafo e o máximo que conseguiu foi trabalhar como contínuo num laboratório fotográfico. Era tão contagiante o seu entusiasmo pelo trabalho que em pouco tempo tinha cativado todos os empregados da casa, inclusive o gerente, também um amante da fotografia. Era um velhote simpático, gordo, baixinho e ligeiramente gago. Bem, falava com dificuldade, mas fotografava como gente grande!
     Tavico esquecia-se das horas fazendo extras depois do expediente, aprendendo a arte de revelar e ampliar negativos, mergulhado na sufocante penumbra vermelha do laboratório. Não precisando ajudar em casa com seu magro salário, em pouco tempo juntou o suficiente para comprar uma máquina fotográfica japonesa de segunda mão.
     O tempo escorria pelas mãos suadas de Tavico como a fina areia de uma ampulheta: lenta, mas progressivamente. A perda da noção da passagem do tempo é característica de quem o usa em função de um trabalho entusiasmante. Quando já estava tirando fotos dignas de serem analisadas por um profissional, sentiu que seu entusiasmo e ele, juntos, já não cabiam mais dentro do laboratório. Entendeu que chegara a hora de provar que já podia viver de sua arte, de seu talento. Puro engano. Estava na hora era de servir ao seu país. A pátria o requisitara. Não para fotografar uma missão especial no exterior e nem sequer aos movimentos das tropas em exercícios de rotina, e sim, para fazer parte deles, sem a sua máquina, é claro.
      Assim como o destino costuma preparar surpresas desagradáveis, pode reservar surpresas agradáveis também. O que seria uma humilhação para qualquer mortal, para Tavico foi um prêmio especial. Foi dispensado do exército por possuir um físico incompatível com as Forças Armadas. Baixo, franzino, anêmico e, de quebra, vitimado por uma bronquite crônica.
     De posse de seu certificado militar de terceira categoria e de um álbum no qual selecionou suas melhores fotos, Tavico percorreu todas as redações de jornais do Rio, em busca de uma oportunidade. – “Só com comprovada experiência profissional” – era o que ia ouvindo por onde passava. Ora bolas - falava de si para si – como se pode adquirir experiência se não nos dão oportunidade para iniciar a profissão? Já quase sem esperança, Tavico resolveu visitar um jornal, cuja fama era de ser mais que um pasquim, um banco de sangue. Tragédia sem morte e sem muito sangue jamais seria tema para a manchete principal e o título teria que ser impresso em letras vermelhas. Enfim, conseguiu um emprego como “foca” para ficar três meses de experiência, sem carteira assinada, sem ordenado e recebendo, apenas, uma pequena ajuda de custo para a condução e o cigarro.
     Tavico começou com toda a fúria e fotografava até as máquinas impressoras rodando o jornal na oficina.
     Ao crepúsculo de um belo dia de verão, ao findar o terceiro mês e com poucas perspectivas de ser aproveitado, encontrava-se ele de plantão na redação, em companhia do fotógrafo mais antigo do jornal e, provavelmente, do jornalismo brasileiro. Este, na verdade, já passara, em muitos anos, o tempo para se aposentar. Mas, por condescendência do proprietário do pasquim, continuava a trabalhar. O estridente toque do telefone, na redação, fez interromper o jogo de “Damas”, que o distraia. Um conhecido informante telefonava para avisar, com algum atraso, que houvera uma pequena rebelião no presídio da Frei Caneca (hoje desativado) e que três perigosos integrantes da baixa criminalidade -  já que os da alta sequer são indiciados - tinham conseguido escapar e deveriam estar naquele momento, malocados no morro que ficava bem aos fundos do presídio. Teixeira, o velho fotógrafo, foi o destacado para a missão, mas Tavico conseguiu, com o chefe da redação, permissão para acompanhar o colega. Aquela, na verdade, seria sua primeira grande chance. O morro estava coalhado de policiais do “Bope”, armados até os dentes. A missão exigia a atuação da tropa de elite. Afinal, entre os fugitivos estava “Olho de Gato”, traficante sanguinário, ex-líder do “Comando Vermelho” e apontado como o inimigo público número um.

     Teixeira, alto, gordo, com pouca mobilidade, avantajada miopia e com o vermelho do sol do crepúsculo encravado nas grossas lentes de seus óculos, colocou-se bem na linha de tiro e foi o alvo mais fácil que encontraram. Um balaço o atingiu pelas costas, vazou seu corpo na altura do coração, impelindo-o violentamente para frente. Surpreso, não tendo tempo para escolher melhor lugar para o pouso, caiu de boca numa vala pútrida e desencarnou sem saber se havia sido atingido pelo mocinho ou pelo bandido daquele filme de ação.
     Tavico foi imediatamente efetivado. Não tanto pela vaga deixada pelo velho Teixeira, mas, sobretudo, pela expressão captada por sua possante “Yashica”: “a expressão de dor de quem é aposentado compulsoriamente”. 

 




ROSINHA
Angelo Romero


           Eu já não suportava a ausência daquela mini-saia rodada, xadrez cinza e vermelho.  A blusa branca com a gravatinha também em xadrez completava o uniforme das alunas do colégio que existe em frente à minha casa.  Aquelas férias de fim de ano pareciam, para mim, as mais longas de todas as férias escolares.

          A janela do meu quarto ficava no pavimento superior de nossa casa, e bem defronte ao portão principal do colégio.  De lá, costumava ver pela manhã e ao cair da tarde, a entrada e a saída das meninas.  O muro alto de tijolos vermelhos de cerâmica, acrescido de uma trepadeira que floria durante a primavera, escondia quase todo o pátio de entrada, deixando apenas descoberta a grande porta principal que dava para a recepção e a secretaria.  Da minha janela podia imaginar as demais dependências, pois conhecia todo o colégio.

          Estive lá apenas uma vez.  Foi quando fui matricular Martinha, minha irmã caçula. Dona Celeste, a diretora, impressionou-me por sua polidez e simpatia. Apesar de impor respeito, não carregava, em suas feições, a imagem do autoritarismo.  Muito pelo contrário, pois possuía o ar de irmã mais velha de suas alunas e, por isso, por elas era querida.

          Quando de minha visita, mostrou-nos todo o Colégio, sempre segurando carinhosamente a mão de minha irmãzinha.  Vimos a secretaria, as salas de aula, o ginásio, adaptado para toda e qualquer modalidade desportiva, a piscina, a sauna, a biblioteca, o refeitório e uma pequena enfermaria.  Enquanto mostrava, Dona Celeste procurava valorizar os mínimos detalhes, e se seu entusiasmo era contagiante, sua fisionomia era encantadora.

Naquele momento era hora de recreio e o pátio estava repleto de rostos e vozes.  Eram meninas e moças que distribuíam vitalidade e alegria.  Mas não creio que, entre tantas, houvesse uma expressão mais jovem e feliz que a de Dona Celeste.  Seus cabelos grisalhos pareciam tranças loiras.  Suas pequenas rugas haviam-se transformado em alegres covinhas, e o brilho de seus olhos, duas lágrimas de vida.  Naquele momento notei também um sorriso de felicidade nos olhos de minha irmã.  Calada, a tudo apreciava, e penso que nada dizia para não desmanchar o sorriso.

          Soube mais tarde, por uma amiga que havia concluído o segundo grau ali, que Dona Celeste dedicara a maior parte de sua vida àquele estabelecimento de ensino.  Sempre foi a primeira a chegar e a última a sair.  Todas as noites, pontualmente às 19 h, um motorista estacionava luxuoso automóvel preto em frente ao portão principal, e esperava-a por tempo indeterminado.

          Num país em que o professor é mal pago, Dona Celeste conseguia manter um corpo docente de excelente nível, regiamente remunerado.  Era com competência e zelo que conseguia supervisionar, pessoalmente, todos os setores de seu estabelecimento, desde o ensino propriamente dito, até a boa alimentação.  As salas de aula eram claras, arejadas e confortáveis, e no refeitório havia um asseio incomum.  Jarras com flores ornamentavam as mesas que estavam sempre forradas por toalhas impecavelmente brancas.

          Funcionando basicamente em regime de dois turnos, o Colégio apresentava também o sistema de semi-internato.  Para as alunas semi-internas, o almoço era servido com cardápio variado e sadio.  Para isso haviam contratado competente nutricionista que sabia dosar gorduras e calorias na medida certa.  Se porventura alguma aluna apresentasse atestado de seu médico particular sugerindo dieta alimentar, esta era seguida à risca.

          A preocupação de Dona Celeste com suas alunas costumava ir além do alto muro de tijolos vermelhos.  Psicóloga, sabia como ninguém, compreender o ser humano em formação.  Visando integrar corpo e espírito, distribuía conhecimentos com muito amor.  Aliás, toda a técnica empregada por ela tinha o amor como sustentação.  Assim, acreditava, seria capaz de fortalecer o caráter, alimentando-o de cultura.

          Se antes a carência de afeto e a falta de bons exemplos eram fatores inerentes às crianças abandonadas ou oriundas de família de baixa renda, hoje tal fato estendeu-se às crianças nascidas em berço de ouro.  E com um agravante, diga-se de passagem, pois o amor destas costuma ser comprado pelos pais, através de caros presentes.  É assim que as crianças aprendem, desde cedo, a conviver com o suborno.

          A ambição desmedida é muito própria do rico e do novo rico.  A luta para a manutenção do status exige-lhes tempo e a sobra deste, que deveria ser dedicado a atenções com os filhos, é desviada para as academias de cultura física, para o tênis, o massagista, o analista, os parceiros de biriba e os amantes de ocasião.

          Em contrapartida, para que as crianças não sintam ausência dos pais e possam descarregar energia e agressividade, estes, por sua vez, impingem-lhes atividades diversas, indiscriminadamente, tais como: estudo de línguas, de música instrumental, de dança, de artes marciais, ginástica e de uma ou mais modalidade desportiva.  Não importa a vocação que cada uma por ventura venha a ter.  Importante mesmo é que fiquem o maior tempo possível fora de casa e que, ao chegar, estejam extenuadas.  Consciente ou inconscientemente, não importa.  Mas, salvo algumas exceções, este tem sido o comportamento dos pais de famílias abastadas.

          Por ter tido, no passado, uma experiência traumática, Dona Celeste criara aquele estabelecimento de ensino.  Agora, através de suas alunas, podia entender melhor a sociedade moderna.  Compreendia que para educar esse tipo de criança, precisaria de um ambiente propício, confortável, capaz enfim, de proporcionar ao jovem educação e cultura, tendo como base o amor e a liberdade disciplinada.  Ela não gostava que dissessem que seu Colégio era o prosseguimento do lar, mas ficava feliz quando ouvia dizer que aquele estabelecimento era um verdadeiro lar.

          Tudo ali me impressionara favoravelmente, mas nada me chamou tanta atenção quanto uma pequena sala com lindas cortinas, tapetes, um moderno jogo de poltronas, abajur de pé e almofadas espalhadas pelo chão.  Havia uma plaqueta na porta com a seguinte inscrição: "sala de repouso".  Nesta sala, Dona Celeste parecia armazenar soluções.  Os problemas apresentados por suas alunas, na sua maioria, fugiam ao âmbito escolar.  Invariavelmente ela dedicava parte do dia em conforto moral, conselhos e orientações maternais das mais diversas.  A "sala de repouso" poderia ser chamada também de "sala das confidências" ou "sala de recuperação espiritual", pois ali foram evitados abandonos de lar, descontroles sexuais, e até mesmo concretização de plano para suicídio.  Era naquela sala que ela recebia os pais das alunas, e que chamava a atenção das meninas por atos de indisciplina.  Era naquela sala também que, depois de admitir uma nova aluna ministrava, a ela, os primeiros conselhos.

          Assim era Dona Celeste, assim era seu mundo.  Soube também, mais tarde, por sua ex-aluna, que por trás daquele mundo, tentava ela esquecer um outro.  Um mundo de sonho e fantasia concebido em seu primeiro e único amor.  Um amor desfeito pela imaturidade de adolescentes.  O casamento durara apenas três anos.  Um único problema, aparentemente sem solução, foi o causador dos desajustes e incompreensões: Dona Celeste não podia ser mãe.  Que destino!  Logo ela que sempre tivera adoração por criança.

          Assim, diante de tal fato, pude compreender melhor o entusiasmo dela ao mostrar-me o Colégio.  Não havia nenhuma intenção de publicidade, pois me foi difícil conseguir vaga para minha irmã.  Era hábito seu, agir daquela maneira diante dos visitantes.  Aquela era uma forma de extravasar vaidade e orgulho, e de encobrir seu próprio drama.

          Depois de acertarmos tudo sobre a matrícula de minha irmã na secretaria, fomos conversar na "sala de repouso", onde então tivemos a oportunidade de nos conhecer melhor.  Expus à Dona Celeste meus problemas com relação à educação de Martinha.  Fiz ver a ela que a pensão de viúva que minha mãe recebia não era suficiente para atender a todas as nossas necessidades, principalmente por termos três crianças em casa em idade escolar.  Diante desse quadro, decidi trancar minha matrícula na Faculdade e arranjar um emprego que ao menos pudesse me proporcionar condições para cuidar do ensino de meus irmãos menores.  Martinha, a caçula, era a única que não estava tendo bom aproveitamento em escola do governo.  Possivelmente por não ter tido tempo de conhecer e admirar papai, com seu equilíbrio e eficiência de chefe de família, e seu dom de manter a paz e distribuir felicidade no lar.  Eu, felizmente, já estava trabalhando e, apesar do salário modesto, podia ver realizado um sonho antigo.  Matricular Martinha naquele estabelecimento modelar de ensino era a melhor forma que poderia encontrar para compensá-la e, naquele momento, estava profundamente feliz.

          Ao agradecer minhas palavras, Dona Celeste não conseguiu disfarçar a emoção.  Em seguida pediu-me, delicadamente, que aguardasse Martinha no corredor, pois precisava falar com ela a sós.

          - Em determinados momentos - disse ela - devemos dar à criança, um tratamento adulto.

          Quando saí da "sala de repouso", bati os olhos numa jovem que presumi ter em torno de 15 anos de idade.  Com a cabeça encostada no braço direito, e com esse apoiado ao portal da "sala", soluçava.  Deveria estar esperando uma oportunidade para falar à Dona Celeste.  Não contive minha curiosidade e indaguei:

          - Deseja falar com a Diretora?

          Ela me olhou, surpresa, prendeu o soluço e respondeu apenas:

          - Sim, quero.

          Apesar da profunda tristeza que a envolvia, era bela.  Seus olhos graúdos eram azul turquesa.  Possuía grandes cílios e perfeitas sobrancelhas.  A boca carnuda e bem contornada estava suavemente pintada num tom róseo.  Os cabelos negros e lisos caiam-lhe pouco abaixo dos ombros.  O busto, em formato de pera, era pequeno e ereto.  Sob a mini-saia xadrez cinza e vermelho, podia-se antever um lindo par de coxas.  Pernas esguias, finos tornozelos e pequenos pés de fada completavam um corpo atraente.  Seu olhar entre o meigo e o arisco, irradiava uma ingenuidade sexy.

          - Aguarde um pouquinho.  Dona Celeste está conversando com minha irmãzinha e logo irá lhe atender.

          Ela olhou-me mais uma vez e, sem nada dizer, voltou à posição primitiva.  A tentação de vê-la me olhar foi maior que minha timidez.  Voltei a falar:

          - Posso ajudá-la de alguma forma?

          Sem mover a cabeça, respondeu-me num tom aborrecido:

          - Ninguém poderá me ajudar.  Quero apenas desabafar com a diretora.

          Não insisti.  Logo a seguir, Martinha saía da sala com o mesmo sorriso que entrara.  Era evidente seu embevecimento.  Às minhas perguntas, respondia com um movimento de cabeça como se estivesse encantada.  Durante muito tempo manteve o mesmo ar feliz.

          - Martinha causou-me muito boa impressão.  Quero que esteja aqui com ela amanhã às sete horas - falou-me Dona Celeste antes de nos despedirmos.

          - E se não tiver tempo hoje para providenciar o uniforme? - perguntei.

          - Não tem importância.  Martinha já perdeu as primeiras aulas.  Nesses casos, o uniforme passa a ser problema secundário.

          Despedimo-nos e, ao me afastar, ouvi a Diretora dizer:

          - Entre, Rosinha.

          Agora podia eu dar nome à imagem que povoava meus sonhos: Rosinha.  Naquele momento entendi que aquele nome ficaria gravado em minha memória enquanto vivesse.

          Na verdade eu já a tinha visto centenas de vezes, sempre da janela de meu quarto.  A primeira vez que a vi, fazia dois anos.  Foi logo após mudarmos para aquele novo endereço.  A partir daquele dia, passei a acompanhar, à distância, sua beleza e elegância.  Agora, depois de vê-la de pertinho, não tive mais dúvidas, era paixão o que sentia.  E tão inconfessável, como parte de meu desejo de ver minha irmã matriculada no mesmo colégio.  Minha sinceridade havia sido apenas parcial ao conversar com Dona Celeste.  Foi evidente meu interesse em provocar uma situação capaz de fazer aproximar-me de Rosinha.  E depois que aqueles olhos azuis turquesa me fitaram, desejei descobrir não apenas o azul, mas o arco-íris de seus mistérios.

          Confesso que o destino foi muito generoso para comigo, ao colocar Anita, minha vizinha, estudando na mesma sala que Rosinha.  Com pouco mais de um ano de relacionamento, haviam-se tornado amigas íntimas.  Ao saber disso, busquei maior aproximação com Anita.  Procurei usar de todo meu charme.  E após trocarmos algumas confidências, percebi que havia adquirido sua confiança.  Meu plano para chegar até Rosinha, através de Anita, estava em andamento.  Não, não gostaria de chegar até Rosinha ainda, e sim, aos seus segredos e mistérios, à sua intimidade, enfim.  Apesar de minha insegurança, usei de subterfúgio e discrição.  Anita não poupou palavras.  Pelo contrário, foi prolífera demais.

          O pai de Rosinha era presidente de uma grande empresa de construção civil.  A mãe, dama da sociedade.  Ela, filha única, sempre teve do bom e do melhor. Até motorista particular para levá-la ao colégio. Serviço esse que dispensava, pelo prazer de ir se divertindo, com as colegas, no ônibus que a deixava na esquina da rua.  Mas soube mais, muito mais.  Soube o que supunha tivesse acontecido ao vê-la chorar naquela manhã: um caso de amor.  Primeiro amor.  Amor que quando findo, costuma deixar marcas profundas.  A carência de afeto levou-a a apaixonar-se por um homem maduro e experiente.  O melhor amigo de seu pai.  Também rico, também casado, também cretino.  A ele dedicara sua primeira noite de amor.  E nem foi noite.  Tudo aconteceu numa tarde cinzenta, de chuva e vento, discos e bebidas, gemidos e silêncio. 

          A vida passava por mim, da mesma forma que Rosinha passava por minha janela: sempre à distância.  Alimentava-me de imagem, sem perfume ou sabor, e parecia que isso me bastava.  No entanto quis o destino novamente interferir a meu favor.  Anita iria aniversariar naquele mês.  Para comemorar a data, estava sendo organizada uma grande festa.  Convidou-me. Imaginei que não poderia haver uma oportunidade melhor para conhecer Rosinha pessoalmente.  A apresentação iria acontecer normalmente, tal qual havia sonhado.  Mas, apesar de toda esta ansiedade, resolvi não ir.  Preferi mantê-la prisioneira de meus sonhos onde então só a mim pertencia, a arriscar-me perdê-la diante do mundo real.  Mas o desejo de vê-la chegar à festa excitava-me. Da janela de meu quarto procurei o melhor ângulo.  Mesmo ausente, sentia-me o centro das atenções.  Nem a distância foi capaz de proteger-me da insegurança e da inibição que me dominavam.  A mente humana é capaz de projetar situações embaraçosas e constrangedoras.  Sentia-me como se fosse uma pessoa estranha em meu próprio quarto.

          Mandei Martinha com um bilhete.  Procurei desculpar minha ausência em virtude de forte indigestão.  É sempre uma satisfação, para quem é pobre, dizer que adoeceu por ter comido demais.

          A festa foi bem concorrida.  Automóveis de luxo congestionaram a rua.  Rosinha chegou num deles, acompanhada por seus pais.  Quando a vi, acenei com a mão, instintivamente.  Foi óbvio que não me viu.  Mas na condução de meus sonhos, mando eu.  Por isso sorri feliz ao vê-la acenar pra mim.

          O tempo passou célere e, quando percebi, já estávamos próximos das férias de julho.  Perdi meu emprego.  Sem salário, não teria como pagar um colégio tão caro.  Se em março daquele ano havia tido o dia mais feliz da minha vida, agora, em julho, acabara de ter o mais triste.  Após explicar o ocorrido à Dona Celeste, solicitei transferência de minha irmã para uma escola pública.  No entanto, para surpresa minha, a diretora não concordou com o pedido.  Com bondade e compreensão não muito comuns nos dias que correm, propôs que Martinha continuasse ali seus estudos até o final do ano.  Se até lá eu conseguisse um novo emprego, voltaria a pagar a partir do primeiro ordenado, apenas o mês a vencer.  Os anteriores seriam saldados através do bom comportamento de minha irmã e de seu ótimo aproveitamento.

          Dois meses depois voltei a trabalhar e a sorrir.  Martinha passou em primeiro lugar nas provas finais.  Agora viriam as férias de fim de ano.  Seriam dois longos meses sem ver Rosinha.  Nunca este fato havia me deixado com tanta angústia e depressão.  Durante aquele ano letivo, acostumara-me a vê-la através de minha janela, sempre à entrada, e algumas vezes também à saída do Colégio.  Procurei, conscientemente, evitar apresentações.  Amar à distância havia sido minha opção.  Como iria preencher agora o grande vazio que sua ausência iria me causar?  Não sabia responder. Rosinha continuaria seus estudos naquele Colégio, já que tanto ela quanto Anita haviam acabado de concluir o 1º grau?  Esta pergunta ficou também sem resposta durante alguns dias.

          Enfim as férias chegaram.  Contou-me Anita que Rosinha iria passá-las em Búzios, e a convidara também para ir.  Vivi dois séculos em apenas dois meses.  Foi um verão de manhãs insólitas, tardes longas e noites angustiantes.

          Março chegou para revitalizar minhas energias e renovar minhas esperanças.  Logo estava eu no pátio do Colégio com Martinha, aguardando não só a chamada para o início das aulas, como também a chegada de Rosinha.  Impaciente, fumava um cigarro após o outro.  Finalmente ela passou pelo portão ao lado de duas colegas.  Falava, gesticulava e sorria muito.  Eu jamais a vira assim.  Era uma alegria contagiante, sem dúvida.  Meus olhos encheram-se de lágrimas.  A imaginação fez com que o ciúme me corroesse a alma.  Afinal, foram dois longos meses de verão longe de meus olhos prospectivos.  Senti-me impotente ao constatar que aquelas férias haviam-na transformado numa jovem feliz, sem que eu tivesse participado dessa transformação.  Naquele momento decidi que na primeira oportunidade iria falar-lhe de meu amor.  Que fosse para o inferno todo e qualquer sentimento de inibição, timidez ou recalque que, por ventura, estivesse sentindo.  Descobri que não era vergonha ser pobre.  Vergonha seria esconder a pobreza.  Para o inferno também com a Sociedade que sempre ditou os padrões de moralidade apenas para proteger seus interesses imorais.  Não sei o que é certo ou errado, e duvido muito quem o saiba.  Só sei que amar não é pecado, seja de que forma venha a ser este amor.  Daria um basta em meu amor platônico, transformando-o em algo palpável e possivelmente recíproco.  Arriscaria todos os meus sonhos numa só cartada, no pano verde da verdade, mesmo que a realidade não me fosse favorável.  Afinal, ao procurar me analisar, entendi que possuía educação, simpatia, razoável cultura com boas possibilidades de futuro.  Por que não arriscar?

          Passei o resto do dia no trabalho, numa excitação incomum.  Pedi ao meu chefe para sair mais cedo.  Senti incontrolável desejo de ver Rosinha deixar o Colégio naquela tarde. Não, não apenas de ver, mas falar, revelar meu amor. Ela passou por mim sem me ver, como se eu fosse invisível. Emudeci. Acompanhei seus passos com os olhos turvos de emoção.

          À noite, Marcos chegou mais cedo do que de costume.  Eu havia acabado de jantar.  Beijou-me na boca como sempre fazia, só que, daquela vez, correspondi com toda a paixão que tinha dentro de mim.  E quando nossos lábios se separaram, não pude conter o sussurro: Rosinha, meu amor!

Rio de Janeiro, manhã da última quinta-feira de fevereiro de 1967.




“BAHIA DE TODOS OS SANTOS”
(Angelo Romero)
         O bar estava repleto. Instalado no alto da parede, à esquerda de quem entra, um aparelho de televisão exibia naquele momento a novela das nove no volume máximo. Na última mesa, nos fundos, à direita, um pequeno grupo ouvia, através de um possante rádio de pilha, a transmissão do jogo de futebol entre o Bahia e o Fluminense de Feira de Santana. Portanto, como é de se imaginar, o barulho por ali era ensurdecedor. Aliás, o brasileiro é o único povo no mundo que pensa que todo mundo é surdo... Vai falar alto assim nos "quintos do inferno"! Pois bem, apesar da diversificação e do volume dos ruídos, uma voz se destacou na pequena multidão:
          - DEUS é baiano! - exclamou Clô, jornalista licenciado da "Folha da Tarde".
          Aquela afirmação em frase curta obteve o efeito de um tiro dado para o alto. O silêncio passou a ser maior do que o da elevação da eucaristia nas missas da sexta-feira da Paixão.
          - Está louco você, ou o fogo da cachaça já lhe fritou os miolos? - perguntou Luís Alfonso, o espanhol dono do bar, com seu castelhano perfeito, mas já com o sotaque baiano.
          Luís estava a trinta anos em Salvador e “Filho da Puta” era a única coisa que sabia falar em português corretamente.
          - É isso mesmo - continuou Clô - descobri que Deus é baiano.
          Não fosse o seu adiantado estado de embriaguez, as pessoas poderiam pensar que ele estava falando sério. Apesar de viver constantemente licenciado para tratamento do alcoolismo, era Clodoaldo Matoso, mais conhecido como Clô, um cronista respeitado. Zé do Carmo, gozador aposentado pelo INSS, procurou alimentar o tema levantado:
          - Olha cara, eu sei que a Bahia é privilegiada. Afinal, é o Estado que mais homens ilustres têm dado ao Brasil... Mas, DEUS!? Eu acho que agora você exagerou.  Como foi que chegou a esta conclusão?
          - Baseei-me em estudos e observações...
          Barriguinha, freguês assíduo do bar do espanhol, era católico fervoroso. Tão católico que a cada gole que dava em seu traçado, não só agradecia como oferecia a Deus. Pois bem, Barriguinha estava indignado com Clô.
          - Baitôla, miserável! Você só pode ser ateu. Não conhece o mandamento que diz "não levantar Seu Santo Nome em vão"? Como você pode brincar com o nome de Deus!?
          - Deus não só é baiano, como nasceu em Salvador - afirmou Clô.
          - Isso é sacrilégio! Cala essa boca, infeliz, antes que eu perca a cabeça e lhe quebre os dentes - gritou Barriguinha, ameaçando se levantar.
          - Calma Barriguinha - interveio Zé do Carmo. Se o homem aí estudou e chegou a essa conclusão, vamos dar uma oportunidade a ele de se explicar... Vá em frente, Clô.
          - A igreja não é a casa de Deus? - perguntou o cronista. Pois bem – continuou - Qual é a cidade que tem 365 igrejas? Qual é a cidade que tem 365 dias festivos no ano? Qual é a cidade em que alguns trabalham pra valer, para que todos possam se divertir diariamente? Salvador, meu filho - SALVADOR!
          "Nova Galícia", mais conhecido como bar do espanhol, era reduto de aposentados, desempregados, biscateiros e foras da lei. Logo, aquela revelação causou indignação na maioria dos presentes, pois quem mais se revolta em ser chamado de preguiçoso, é justamente quem menos é chegado ao trabalho. Assim, em meio a palavrões e ameaças, o grito de Zé do Carmo se fez destacar:
          - Calma gente, que o letrado aí deve ter mais coisas a dizer.
          - E é bom que tenha mesmo, porque até agora o que ele fez foi chamar baiano de vagabundo. E logo esse miserável que só vive licenciado!
          - E quem foi que disse que baiano é preguiçoso? - Baiano é esperto, criativo... Trabalha com a cabeça. E quem lhe deu toda essa esperteza e inteligência? Deus, que é seu Pai, e Jesus que é seu irmão - falou Clô.
          Aproveitando o momento de silêncio, Zé do Carmo provocou:
          - Mas esperto só se cria quando encontra otário, e por aqui quem é otário?
          - Ué, os turistas - rebateu ele. O pessoal que vem de todas as partes do Brasil e do mundo pra trazer dinheiro pra nós. Ah, e por falar em turista, por que vocês acham que Deus colocou Sergipe coladinho à Bahia?
          - Eu sei lá porque - resmungou Zé do Carmo.
          - Por causa do artesanato baiano - respondeu Clô.
          - Êpa. Essa eu não entendi...
          - Mas eu explico - continuou. Nós faturamos horrores com o nosso artesanato que é conhecido no mundo todo. No entanto, a maior parte do artesanato baiano é feito em Sergipe. Ou seja: eles, por lá, dão um duro danado, e nós aqui, vendemos e ganhamos à fama!
          - Esse indivíduo continua a chamar a gente de preguiçoso, cara. Já vi que pra ele, baiano não trabalha... Eu já tô começando a ficar puto - falou Barriguinha, ameaçador.
          - Se segura aí, Barriguinha. O que o letrado quer dizer é que nós, baianos, sabemos ganhar dinheiro sem  precisar  dar  duro...
          - É isso aí - continuou Clô. Por exemplo: - quem inventou o "Trio Elétrico"?
          - Foi um baiano? - perguntou Zé do Carmo.
          - Não sei, e pouco me interessa saber. O que importa mesmo é que foi um baiano esperto quem divulgou a engenhoca. Antes do advento do "Trio Elétrico" era preciso uma orquestra para levar o som para um grupo de pessoas. Hoje, através da engenhoca, um pequeno grupo de músicos, sem fazer muita força, leva o mesmo som para milhares de foliões. Vê? Só mesmo coisa de baiano...
          É bem verdade que, até ali, nada havia sido dito de concreto, por Clô, que pudesse provar a nacionalidade e naturalidade de Deus. No entanto, com sua verve, o cronista conseguira acalmar os ânimos. A discussão, naquela altura, poderia ter morrido, mas Zé do Carmo não deixou:
          - Tu achas cara, que se Deus fosse baiano ia mandar Jesus, Seu filho, pra Jerusalém? Mandava Ele pra Salvador.
          - E quem pode me assegurar que Jesus quando veio ao mundo não esteve por aqui primeiro hem? Tem alguém aqui que conheça Jerusalém?
          Silêncio total!
          Pois asseguro que não precisam ir até lá. Seria uma perda de tempo e de dinheiro. Se querem saber como é Jerusalém, basta ir até Milagres, aqui no sertão baiano. Tenho a impressão de que Jesus, antes de ir pra Jerusalém, andou uns tempos por Milagres para ir se acostumando com o tipo de região... Claro que não temos a infraestrutura que hoje eles têm por lá. E nem precisamos, pois se em Jerusalém o povo vive à custa do turismo, em Milagres, a gente de lá vive à custa de milagres. Aliás, esta é a única diferença, pois em termos de riqueza e beleza naturais, é tudo igual. É como trocar merda por cocô.
          Todos riram exceto Terencio. Para falar neste último personagem, preciso abrir um parêntese: - Seria desperdício de tempo calcular as medidas, em centímetros, que aquele negão tinha de tórax, braços e pernas. Porém, de altura era fácil: mais de um metro e noventa. Terencio estava sentado no fundo do bar e, ao se por de pé, quebrou a luminária do teto com a cabeça. Sua voz de trovão fez balançar os cascos vazios de cerveja que estavam por sobre o balcão:
          - Está me chamando de merda? - perguntou ele a Clô. Pois saiba que sou filho daquela terra...
          Na certa aqueles eram os dentes mais alvos e perfeitos de toda a Bahia. Era, sem dúvida, em todos os sentidos, um dos mais bem dotados exemplares da cor de ébano. Negro pra qualquer rainha escandinava abdicar da coroa! Mesmo assim, diante daquele monumento, Clô não perdeu a pose:
          - Se o amigo aí é de Milagres, por favor, não se ofenda. Quem nasce naquela região pobre, traída pelos políticos, esquecida pelas autoridades e, mesmo assim, consegue sobreviver e se transformar num homem forte, saudável e inteligente como vossa mercê, é prova viva de que minha teoria está certa. Você, cidadão, é o próprio milagre!
          O negão voltou a sentar e, já mais calmo, falou:
          - Bem, na verdade, eu nasci em Milagres, mas fui criado numa fazenda de cacau em Itabuna...
          - Milagres ou Itabuna, não importa. Tudo isso é relevante. O que conta, realmente, é que aqui todos nós somos baianos com a graça de Deus. Temos esse privilégio. O verdadeiro baiano não briga com outro baiano a não ser por mulher, cachaça ou futebol. Portanto gente estou tranquilo, pois falo de Deus Todo Poderoso!
          - Ah, quer dizer que você acredita que por religião, baiano não briga? - perguntou Barriguinha.
          - Claro que não - respondeu Clô - pois se brigasse os adeptos do Candomblé não iam lavar as escadarias da igreja do Bonfim. Nós, baianos, somos um povo unido na religião, na política e nas artes.  Principalmente nas artes! Ao eleger os melhores do país, o baiano é unânime. Querem ver?  Vou perguntar, sabendo que não precisam responder: - Quem é o maior escritor do Brasil? Qual é o melhor pintor? Quem são os melhores cantores, cantoras e compositores? Quem é o maior líder político do país? Todos são baianos com a benção de Deus!
          Houve aplausos e silencioso balançar de cabeça em sinal de aprovação. No entanto, Zé do Carmo não estava nada satisfeito e acabou por provocar novamente:
          - É, na retórica, o ilustrado cronista é imbatível! Porém, pra mim, pessoalmente, tudo até aqui não passou de prosopopéia, de uma prosa divertida. Na verdade, nenhuma prova cabal, histórica, irrefutável foi apresentada, capaz de colocar como inquestionável, tão absurda tese. Entretanto, como acredito na inteligência e na cultura de nosso cronista maior, imagino que você, Clô, tenha guardado para o final, uma revelação bombástica, colhida sob a poeira de um alfarrábio do tempo. Vamos lá, meu predileto cronista, não nos faça esperar mais. Seja benevolente para com nossa desconfiança e comprove sua tese.  Afinal, por que acredita que Deus é baiano?
          Clô coçou a cabeça. Dezenas de olhos questionavam o silêncio. Olhos que pareciam fuzis apontados em sua direção no momento que antecede ao fuzilamento. O cronista pigarreou procurando ganhar tempo. O bar do espanhol nunca havia experimentado silêncio parecido. De repente, Clô sorriu. Foi um sorriso curto, contido. Mais de alívio do que de satisfação. Parecia que havia encontrado uma luz no fim do escuro túnel, quando começou a falar pausadamente:
          - Como é sabido por todos, Deus fez a semana ter sete dias. Em seis criou o mundo e no domingo descansou, não é verdade?
          Não se ouviu uma só voz, murmúrio ou ruído.
          - Mentira! - gritou Clô. Todos vocês foram enganados a respeito. Domingo não é o último dia da semana, é o primeiro. Portanto, Deus, quando resolveu criar o universo, descansou bastante no domingo, pra depois fazer o mundo na segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado. E aí está meus amigos, a maior prova que posso dar de que Deus é baiano...
          A voz de Zé do Carmo interrompeu o silêncio:
         - Explique melhor. Não sei aonde você quer chegar...
          - Muito simples - concluiu o cronista: o baiano é o único povo no mundo, capaz de tirar férias antes de começar a trabalhar...
          E aí, gente, o pau comeu...




O futuro a Deus pertence.
Angelo Romero
     As pessoas estão divididas em dois distintos grupos: as que desejam saber sobre seu futuro, e as que preferem ser surpreendidas. É um conjunto de detalhes que as separam e tudo poderá estar ligado a questões de índole e criação. No grupo das audaciosas estão as impacientes, irrequietas e curiosas. Já as do grupo das acovardadas e impressionáveis estão as que costumam dizer: “o futuro a Deus pertence”.
     Já Bartô (Alberto Ferreira Martins), enquadrava-se no primeiro grupo. Como não se achava uma pessoa impressionável, dizia que sabendo sobre seu futuro, conseguiria se precaver e, antecipando-se a determinado problema, poderia tomar algumas providências.
     Bartô atravessava um momento crítico na vida. Duas questões, uma de ordem profissional e outra de ordem sentimental, passaram a incomodá-lo. Por viver uma vida saudável, sentia-se um touro de forte. Alimentava-se bem, não tinha vícios, costumava fazer exercícios físicos e a dormir sete horas por noite, sempre no mesmo horário. Com relação à saúde, vivia tranquilo. Jamais sonhou grande e nunca teve maiores ambições. Vivia com o estritamente necessário. Não contraía dívidas que não pudesse pagar. Juntando seu salário de bancário, com o de professora de Marilda, sua mulher, conseguia pagar as contas do mês sem ficar no vermelho. Não se dava ao direito de fazer extravagância, como andar na moda, comprar roupa de grife e comer em restaurante. Divertia-se em casa e raramente ia ao cinema com a mulher ou a um jogo de futebol. Praia costumava ir, no verão, porque era de graça e quando desejava comer na rua, preparava uma cesta com iguarias caseiras para um picnic na Quinta da Boa Vista.
     O mesmo tempo que tinha de vida conjugal, tinha como bancário: vinte anos. Possuía diploma de contador e trabalhando no caixa do banco, nunca teve problemas. Sempre foi pontual e jamais faltou um dia sequer ao trabalho. Bartô sentia-se bem casado, amava a esposa e acreditava que ela o amava. No entanto, nada mais os surpreendia e a rotina poderia vir a ser um inimigo invisível. Dividia o aluguel de uma casa no subúrbio do Rio, com Juvenal, seu cunhado, único irmão de Marilda, que era casado com Estela. Havia um bom relacionamento entre os casais e a paz jamais foi ameaçada até certo domingo de verão, a 40 graus na sombra, quando uma nuvem negra começou a pairar sobre sua cabeça. Não era bem uma nuvem, era uma piscina dessas desmontáveis, feita de material impermeável e que pode ser armada na parte externa da casa. A idéia partiu de Juvenal e todos colaboraram com a compra da piscina e com as despesas para a sua inauguração. Para aproveitar o belo domingo de sol decidiram, de comum acordo, preparar um churrasco regado a muita cerveja. Uma grande extravagância para orçamentos tão limitados. E a despesa já começou com o uso da água: cinco mil litros.
     Enquanto Juvenal, vestido num short – modelo zona norte - ou seja: largo e estampado em cores berrantes, tentava acender a churrasqueira improvisada por um tambor de roda de caminhão, abanando o jornal embebido em álcool para acender os carvões, Bartô, com calção de banho curto e apertado, do tempo em que era mais jovem e bem mais magro, acomodava as latas de cerveja na caixa de isopor cobrindo-as com as pedras de gelo que acabara de partir.
     Enquanto os homens trabalhavam, as mulheres dividiam o banheiro, preparando-se para a entrada triunfal. Marilda, vestida num maiô inteiriço que fez parte de seu enxoval há vinte anos e que ostentava na pela a cor amarelo-escritório, besuntava pernas, braços, costas e rosto com um creme branco protetor. Já Estela, num biquíni de fio dental, depilava cuidadosamente as penugens das pernas. Quando Marilda apareceu com o nariz todo branco, foi vítima de gozação do irmão e modelo para foto do marido, que já estava com seu celular de prontidão para captar a imagem.
     - O que minha mulher está fazendo que ainda não apareceu? – perguntou Juvenal.
     - Está se depilando – respondeu Marilda e mergulhou. Foi a primeira a entrar na água.
     Antes de o carvão virar brasa e provocar estalidos, as latinhas de cerveja começaram a ser abertas. De repente, como se tivesse surgido do meio da fumaça, despontou Estela, esplendorosa em seu biquíni fio dental. Aos olhos de Bartô, lhe pareceu ser uma mulher que estava vendo pela primeira vez. Bem, o rosto ele já conhecia, mas o corpo... E com aquele corpo quem poderia olhar para o rosto. Tentou enquadrar a imagem na tela de seu celular, mas, ao acioná-lo já sabia que a foto sairia tremida. Logo ele procurou proteger-se do sol, sob a sombra do guarda-sol, aberto sobre uma mesa, colocada do lado oposto da churrasqueira. De nada adiantou. Não era o calor provocado pelo sol que o fazia derreter-se. Aquela imagem por si só já era um braseiro. Fazia arder mais o seu corpo do que a carne sobre o carvão. Pensou até que os estalidos que agora ouvia já não eram provenientes do carvão em brasa e sim dos próprios ossos do corpo. Optou por mergulhar para aplacar o intenso calor.
     Ao mesmo tempo em que Juvenal revirava a carne para tostar por igual, Estela, deitada sobre a toalha estendida no chão, virava de bruços para adquirir o mesmo tom de bronzeado nas diversas partes do corpo. Para que o biquíni em fio dental não se torne um modelo impróprio para a mulher, é indispensável que ela ostente um perfeito formato de bunda e a bunda de Estela foi esculpida pelos deuses do olimpo!
     A mulher é o único animal que sente imenso prazer em provocar o macho, mesmo que este não desperte nela o menor interesse. O provocar por provocar a realiza. E Estela sabia que ao passar o creme sobre as partes mais íntimas de seu corpo de maneira sensual e até lasciva, estava não só provocando o cunhado como o excitando e levando-o aos mais baixos sentimentos inerentes ao ser humano. No entanto, o feitiço voltou-se contra a feiticeira. Bartô era um homem muito bem dotado e não teve como evitar sua ereção. Aquele seu minúsculo calção de banho, do tempo em que era atlético e que tinha barriga de tanquinho, não teve como disfarçar o volume que logo se formou e se manteve ereto durante todo o churrasco.  A cerveja acabou, a carne acabou, o sol se escondeu e só duas coisas permaneceram iguais até o último mergulho: o olhar de Bartô para a bunda de Estela; o olhar de Estela para o volume de Bartô.
     Depois daquele domingo de verão, Bartô nunca mais foi o mesmo. O que estaria sentindo pela cunhada? Amor? Não, não seria amor, pois amava sua esposa. Paixão? Não, não seria paixão. Paixão é o prólogo de um grande amor. O que sentia, na verdade, era um imensurável e reprimido desejo. Uma fixação naquela bunda escultural. Chegara a sonhar com ela e a gozar abundantemente como se o contato físico tivesse sido real. Se percebesse o menor sinal de que a cunhada o desejava, como ele a desejava, não pensaria duas vezes. Arriscaria tudo em troca de uma única relação carnal. Ele se sentia enfeitiçado e acreditava que o feitiço só seria desfeito se seu desejo fosse realizado. Seu tormento crescia a cada dia na espera de um simples sinal. Já não se alimentava nem dormia direito. Ao confidenciar sua tara ao seu melhor amigo, ele o aconselhou:
     - Vá se confessar com o padre Teodorico. Ele é um santo homem. Ouça o que ele irá dizer.
     Foi e desabafou:
     - Sei que desejar a mulher do próximo é um pecado capital, padre, mas não estou encontrando forças para me controlar. E, para piorar, tanto a mulher, quanto o marido estão muito próximos de mim. Sinto que estou enfeitiçado.
      Padre Teodorico procurou lhe mostrar o melhor caminho:
      - O demônio está lhe testando. Reze, filho. Se entregue a Deus Pai. Ele ouvirá suas preces, pois estará mais próximo de você do que o pecado.
     Bartô rezou, rezou, rezou, mas seu desejo sobrepujou sua fé. Para piorar sua angústia, a promoção prometida por seu chefe não se concretizava. Ele deixaria de trabalhar no caixa e seria promovido a gerente de contas. Teria quase o dobro de salário. Mas uma vez seguiu os conselhos de seu melhor amigo:
     - Se você deseja saber sobre seu futuro, procure madame Celina.
     - Quem é madame Celina?
     - É a melhor vidente da praça. Cartomante de mão cheia! Ela joga cartas, búzios e ainda lê as linhas da mão. Suas previsões costumam acontecer.
     - O que lhe trouxe a mim? Quais são seus problemas? O que lhe aflige e o que deseja saber sobre seu futuro? – perguntou a vidente, diante de uma bola de cristal.
     - Só tenho dois problemas, madame: um de ordem profissional e o outro de ordem carnal. Estou enfeitiçado por uma mulher e desejo saber se ela me quer.
     Madame Celina jogou cartas, búzios e por último leu a mão de Bartô.
     - Essa mulher vive a lhe provocar, mas não lhe deseja. Se insistir, ela poderá ser sua perdição. Quanto ao lado profissional, afirmo que dentro de três dias, no máximo, você terá uma grande promoção.
     Um mês depois, sem a promoção e cada vez mais sendo provocado pela cunhada que lhe lançava olhares pecaminosos, Bartô já não sabia o que fazer.
     - Já que as previsões de madame Celina não se concretizaram, procure o babalaô Sete Luas. Este, eu lhe garanto, não falha – aconselhou o tal amigo.
     Devidamente incorporado o babalaô depois de uma longa baforada em seu charuto e de cuspir para longe um pedaço da folha do fumo, falou:
     - Não me diga nada, zifio, tu tá carregado, coberto de mau olhado. Tu ta sendo traído em casa e no trabaio. Se afaste da tal mulher e procure um novo emprego.
     Bartô não deu ouvido. Uma semana depois, encorajado, decidiu marcar um encontro com a cunhada num restaurante que ficava em frente a determinado Motel. Naquele fim de tarde, antes de deixar o emprego, recebeu um aviso prévio da agência bancária em que trabalhava. Para completar sua infelicidade, a cunhada faltou ao encontro. E como não existe nada que seja bem ruim que não possa piorar, antes de pegar um táxi de volta para casa, ainda viu Marilda, sua bela esposa, sair do Motel no carro do gerente de seu banco.
     O babalaô Sete Luas acertou em cheio.


O Sacristão, o Padre e a Beata

Vendo a mulher no tanque esfregando e enxaguando roupa e uma pilha de louça na pia para ser lavada, Esperidião, o marido, não se conformou:

- Cadê Jurema que não vem lhe ajudar?
- Está rezando o terço - respondeu a mulher, sem interromper o que estava fazendo.

- De novo? E quantos terços nossa filha reza por dia?
- Três. Um ao acordar, outro depois do almoço e o terceiro as seis, na hora da Ave Maria...

- Não acha que é reza demais, mulher?
- Deus gosta de ser lembrado e rezar nunca fez mal a ninguém...

- Ajudar a mãe nos trabalhos de casa, também não e Deus, tenho certeza, iria gostar e compreender.

- Mas Deus está em primeiro lugar.
- Pelo que eu vejo, Ele está em primeiro, em segundo e em terceiro.

- Deixa a menina pra lá, Dão. Ela está rezando por ela, por mim e por você.
- Eu não passei procuração pra ela.
- A prova de que Deus ouve as preces de nossa filha é que me dá saúde para fazer todo o serviço de casa, e é de saúde que preciso.

 Esperidião desistiu de argumentar. Mulher, quando esposa, raramente muda seu ponto de vista em discussão com o marido. Costuma ser perda de tempo e desgaste inútil. Porém, intimamente ele não se conformava com o que entendia como um exagero da filha, nem com o fato dela deixar de ajudar a mãe.

Alguns quarteirões dali, Gaguinho, como era conhecido o sacristão, preparava a igreja para as missas dominicais que aconteceriam no dia seguinte. Padre João de Assis, vendo-o trabalhar, falou:

- Parabéns! A ornamentação está ficando bonita para a Semana Santa. Na segunda-feira, dia de sua folga, não vou abrir a igreja. Pretendo fazer uma pequena viagem para visitar minha velha mãe.

O bar do Tavico, que ficava em frente à igreja, costumava reunir aos sábados os maiores viciados da cidade: viciados em bebida e em carteado. Esperidião participava nas duas frentes: bebia muito enquanto jogava.

 Naquela manhã o bar recebia uma nova dupla de fregueses. Eram caixeiros-viajantes que estavam hospedados na pensão de dona Ismênia.

Enquanto o jogo corria solto, os dois, numa mesa de frente para a rua, bebericavam e apreciavam o movimento dos passantes. Homem que costuma beber em bar, raramente foge de três assuntos: futebol, política e principalmente, MULHER. Nisso passou Jurema em direção da igreja, andando de cabeça baixa, vestindo saia comprida e blusa abotoada até o pescoço. Imaginava ela que com aquele comportamento e vestida daquela forma, jamais chamaria atenção, ou despertaria a cobiça dos homens.

Para o povo da cidade, talvez. Porém, para aquela dupla de visitantes, não foi bem assim. Jurema possuía um corpo cultural, capaz de sobrepor-se à indumentária simplória e seu andar, em salto alto sobre o piso irregular da calçada, proporcionavam aos quadris um provocante, embora sutil rebolado. E não existe nada capaz de superar a imaginação pecaminosa de um homem mal intencionado.

- Veja mano, aquela ali deve ser uma grande trepada!
- Por que diz isso? Conhece a moça?
- Não e nem preciso. Mulher que anda de vista baixa, olhando para o chão e vestida daquele jeito para esconder o corpo, costuma ser uma falsa pudente... Um furacão na cama!

 Esperidião ouviu o comentário, mas como não viu a filha passar, concentrou-se no carteado.

- Você não vai reagir, Dão? - perguntou o parceiro.
- Reagir de que?
- Vai deixar o cara ali dizer que sua filha deve ser um furacão na cama, uma grande trepada?

 Não foi preciso que se dissesse mais nada. A pancadaria comeu solta. No início Esperidião começou perdendo dos dois. Depois, ajudado por todos que estavam no bar, os visitantes passaram a apanhar e ficaram em petição de miséria. A polícia chegou e conseguiu evitar uma tragédia maior. Porém, o bar do Tavico foi quem sofreu maior estrago.

Padre João de Assis há tempos que estava desconfiado. Podia dizer que o que sentia era quase certeza. Gaguinho, seu sacristão, estava roubando os cofres da igreja. Coisa pouca, era verdade, mas, com a continuidade deu para notar. Roubava para alimentar seu vício: Gaguinho gostava de fumar bons charutos. O padre inventou que iria viajar na segunda-feira para ver se pegava o sacristão em flagrante. E não deu outra.

Precisando de uns trocados para comprar ingresso no cinema local para assistir a "Paixão de Cristo", Gaguinho foi pego com a mão dentro da urna coletora.

 - O que eu devo fazer com ladrão que rouba a igreja? Devo expulsá-lo e denunciá-lo para a polícia? - perguntou, segurando a mão do sacristão.
 Gaguinho não se alterou e procurou manter a calma:
 - Como um santo homem, o senhor deve me perdoar. Eu não sou representante de Deus na terra. Não tenho o dom da santidade, nem a missão, como pastor, de perdoar suas ovelhas. Mas assim mesmo, padre, eu lhe perdoo porque sei que a carne é fraca.

 Surpreso e sem compreender o que acabara de ouvir, perguntou:

 - Você!? Perdoar-me de quê? De que pecado?
 - De trepar com dona Jurema todas as segundas-feiras na sacristia. E lhe garanto que Vossa Eminência ficará no lucro se me perdoar. De minha parte, deixo de roubar a igreja e nada conto do que acontece por aqui às segundas-feiras...

No domingo o sermão do Padre João de Assis teve como tema o perdão.





A morte faltou ao primeiro compromisso
Por Angelo Romero
     Dulcenéia Aparecida da Anunciação, ou melhor, Dulcinha, estava aperreada. Já não sabia o que fazer. Os remédios caseiros já não faziam efeito e sua patroa, madame Carmen, poderia desencarnar de uma hora para outra. Lembrou-se de um passado remoto em que a patroa esteve à morte e agora parecia padecer do mesmo mal. Os sintomas pareciam ser os mesmos. Naquela ocasião, foi salva por Justino, famoso babalaô. Madame Carmen fôra vítima de um trabalho de feitiço, cujo motivo era a inveja de uma concorrente. O babalaô desfez o trabalho e ela ficou curada. A primeira providência que tomou foi chamar o babalaô. Ele, depois de uma baforada de seu charuto, soltou seu veredicto com a voz da entidade envolvido na fumaça que acabara de expelir:
     -O cavalo está muito doente, sofrendo de um grande mal.
     - O que ela tem? Qual é a sua doença? – perguntou Dulcinha aflita.   
     Outra baforada e outro veredicto:
     - Velhice.
     - E velhice é doença? – perguntou com desdém.
     - A pior de todas porque não tem cura. Agora, diante da situação de miséria de vocês, trabalho motivado por inveja é que não poderia ser – completou Justino.
     - E o que nos aconselha a fazer? Ficarmos aqui, de braços cruzados, parados, esperando que ela morra? Não podemos levá-la para o Pronto Socorro, porque madame já não tem forças para se locomover, não temos dinheiro para o táxi nem para chamar um médico para vir atendê-la aqui.
     - Por que não usam o telefone para chamar uma ambulância?
     - Que telefone? Não temos e, se tivéssemos, até uma ambulância aparecer por essas bandas ela já estaria morta. E, além do mais o telefone comunitário está quebrado e eu não conheço um vizinho que tenha telefone.
     - Eu poderia emprestar meu celular, mas ele está sem carga – falou o babalaô, já com a voz de Justino.
     Comentário do narrador: “O babalaô moderno já não se limita a falar com os mortos. Por garantia ele já usa o celular”.
     - Dulcinha! – gritou madame Carmen, com a voz estrangulada – me traga meu álbum de retratos. Quero rever a cara dos que já se foram para reconhecê-los quando eu chegar por lá.
     - Viu só? Madame já está se entregando. Não quer mais reagir. Não tem mais forças...
     Justino, antes de partir, numa atitude piedosa, retirou o cordão de pedras que o protegia e o colocou em madame Carmen. Que os orixás conduzissem a infeliz senhora pelos melhores caminhos aos braços de Oxum.
     A retornar ao quarto de madame, trazendo o álbum de retratos, Dulcinha percebeu que um deles havia se descolado e caído no chão. Tal fato lhe pareceu um aviso. Era uma foto de Dr. Adibe. Ele, quando estudante de medicina, fôra um dos mais assíduos frequentadores do castelo de sua patroa. Madame gostava muito dele e costumava lhe dar crédito quando, sem dinheiro, permitia que o jovem fosse atendido por uma de suas sobrinhas, que era como ela tratava suas mulheres.
     O maior problema de Adibe, estudante pobre, não foi a falta de dinheiro. Foi, isto sim, a de ter se apaixonado loucamente por Dorinha, a mais jovem profissional do Castelo de Madame Carmen. Dorinha tinha feições angelicais, um corpo de fazer inveja às demais mulheres-amas da Casa e a deixar os frequentadores embasbacados. Se algum escritor tivesse escrito um livro de memórias sobre a fase áurea do castelo, Dorinha teria tido o direito de ter um capítulo à parte. Os pais a haviam criada para ser freira. Ela, apesar de não possuir vocação, era uma jovem tímida, covarde, frágil e obediente demais para se rebelar. Acabou por se deixar levar pelos pais. Assim, ao invés de vir morar em Salvador, seu grande sonho, a menina foi internada na Ordem das Carmelitas. E ainda como noviça, a um passo de ser ordenada, Dorinha, surpreendendo a todos, conseguiu desvirginar-se com as próprias mãos, acusando o padre Jonas de tê-la feito mal. A Ordem das Carmelitas abafou o caso. Proibiu o padre de frequentar suas dependência, solicitou que outro clérigo fosse designado para rezar missas dominicais e expulsou sumariamente Dorinha do Convento. Sabendo que não seria recebida pela família e nem dando muita importância ao fato, a jovem submissa, agora rebelde, matou seu antigo desejo: conhecer Salvador. E, na capital baiana, depois de perambular pelo Centro, foi se bater no Pelourinho.  Foi Dudu que a colocou nas mãos de madame Carmen.
     - O que houve com seu cabelo? Deu piolho? – perguntou a dona do Bordel ao ver Dorinha com a cabeça raspada.
     - Para responder a essa pergunta, a jovem contou toda a sua vida a partir dos motivos que a levaram à Ordem das Carmelitas.
     - Quer dizer que você já não é virgem sem ainda ter tido relação sexual com homem?
     - É verdade – respondeu balançando a cabeça envergonhada.
     - Pois agora irá conhecer o melhor prazer do mundo! E com seu rostinho angelical e com seu corpinho de manequim recauchutado, você terá muito prazer e, o melhor, ainda será paga para se divertir.
      Dorinha sorriu um sorriso indecifrável.
     - E qual é a sua idade, mocinha?
     - Dezesseis anos.
     - Tem documentos?
     - Não. Deixei tudo na Ordem.
     E percebendo a cara de preocupação de Madame Carmen, a jovem falou, com voz chorosa:
     - Será que por não ter documentos e ser menor de idade a senhora não vai poder me aceitar?
     - Eu sou a Madame Carmen, meu bem. A minha voz ultrapassa os muros do meu Castelo. Aqui, no Pelourinho, todos me escutam e todos me atendem. Antes que seu cabelo cresça por completo, terá nova identidade, com tudo novo, filiação, nome e data de nascimento.
     As imagens daquele filme passaram muito rápidas. Dulcinha ainda estava com o retrato de Adibe nas mãos, enquanto Madame Carmen, diante do álbum, voltava a ter a respiração normal. Era como se corpo e alma tivessem retornado ao passado.
     - Lembra deste aqui? – perguntou Dulcinha para a patroa, apontando uma foto.
     Carmen, com as mãos trêmulas a segurar o retrato, balbuciou:
     - Como poderia esquecê-lo De todos os meus clientes foi o que eu mais gostei e o único em quem conferi crédito.
     - Lembra do nome dele?
     - Para que servem os nomes? Como poderia guardar os nomes de todos que frequentaram meu castelo? Nunca me importei com nomes, meu bem, mas suas fisionomias guardei-as todas. Sempre me importei com o dinheiro e com o bom comportamento. Se pudessem pagar e me respeitar, tanto poderia ser doutor, quanto malandro desempregado.
     - Pois este é o doutor Adibe, que hoje é considerado um grande médico. Se eu encontrasse o telefone de seu consultório, eu o chamaria para cuidar da senhora e ele, tenho certeza, viria correndo.
     - E você acha que eu a deixaria incomodá-lo?
     Dulcinha nada respondeu. Estava preocupada com a demora de Dudu. Sim, Dudu era o terceiro personagem que, assim como ela, Dulcinha, não havia abandonado o castelo. Em parte, por amor a Madame Carmen; em parte, por não ter onde viver. Este personagem bem que poderia pertencer a outro capítulo. O castelo, em sua fase áurea, foi um grande depositório de sonhos. Todos que ali trabalharam, alimentavam um sonho. A grande maioria das mulheres esperava encontrar um protetor que lhe tirasse dali para lhe montar casa com comida, luxo e conforto. Outras alimentavam um sonho maior: casar, receber um nome respeitável e constituir família. Já Dulcinha sonhava em ser descoberta e tornar-se artista de cinema. Dudu, ah, Dudu, seu sonho era economizar o bastante para arriscar a vida numa cirurgia capaz de lhe mudar de sexo. Agora, velho e desesperançado, seu único sonho era ter alguns trocados para comprar a companhia, mesmo que por breves momentos, e ter um jovem inexperiente para levar para a sua cama. Sabia que seus sonhos, nos tempos atuais, seria quase impossível: conseguir juntar dinheiro e encontrar um jovem inexperiente seria quase uma utopia. E Dudu, com o pouco dinheiro que faturava com os biscates que conseguia fazer, ajudava a manter a casa que lhe dava moradia.
     - Veja este retrato, Dulcinha – falou Madame Carmen, com voz fraca, apontando a figura de Dudu, bem jovem, em roupa de malha.
     - Coitado! Ele levava muito jeito para o balet, mas não teve dinheiro para se manter no curso.
     - Nem para comprar novas sapatilhas, coitado!
     Os olhos embaçados de Madame Carmen ganharam um brilho fugaz, diante de um outro retrato. Era ela, bem jovem, estudando canto lírico no conservatório musical de Sevilha. Sua mãe, apaixonada por ópera, a batizara com o nome de Carmen em virtude do principal personagem da ópera de Bizet. O sonho foi desfeito a partir da segunda guerra mundial. A Espanha, sob o domínio fascista de General Franco, fez com que sua família, que lutava contra o regime, viesse se refugiar no Brasil.
     Dudu inventou que precisava comprar um remédio capaz de combater a falta de ar de Madame Carmen mas, na verdade, o que ele queria era estar distante do Castelo para não ter que presenciar a morte de sua protetora. Acabou retornando a casa sem o tal do remédio.
     - Não consegui comprar o remédio. Só vendem com receita médica. Como está a madame? – perguntou com sua voz de falsete e com seus gestos afeminados.
  - Um pouco melhor. Distraiu-se vendo o álbum de retratos – respondeu Dulcinha.
     Dudu deu um longo suspiro de alívio.
     - Você se lembra do Dr. Adibe, Dudu?
     - Como eu poderia esquecer? Nunca deixou de me dar uns trocados quando vinha por aqui. É pena que tenha deixado de frequentar a casa por um longo tempo...
     Dulcinha desabafou:
     - Nunca me apaixonei de verdade, graças a Deus, mas sei que paixão é uma das doenças que mais afeta o coração. Dr. Adibe não se conformou com o suicídio de Dorinha.
     - É verdade. Cabeça fraca da infeliz. Que vida! Dorinha não conseguiu se livrar do remorso por ter destruído a vida do padre Jonas, ao tentar construir sua própria vida..
     - Pois se eu encontrasse o telefone do Dr. Adibe, chamaria por ele. Quem sabe ele, com sua gratidão e conhecimentos pudesse fazer prolongar a vida de nossa protetora, hem?   
     Dudu não disse uma só palavra e partiu célere para o seu quarto. Momentos depois voltou ele com um jornal velho nas mãos. E apontando para um determinado anúncio, falou:
     - Veja isto aqui. É uma propaganda da clínica do Dr. Adibe. Este jornal é velho, mas se não mudou o número do telefone...
     Resumindo: em menos de uma hora, um moderno e luxuoso automóvel parou na porta do Castelo e de seu interior surgiu um senhor de cabeça grisalha, muito bem vestido, portando uma maleta e acompanhado de uma jovem bonita. Era a sua enfermeira.
     Em pouco tempo o clima de velório se transformou num clima de festa. Depois de examinar minuciosamente sua velha amiga, Dr. Adibe falou:
     - A paciente já está devidamente medicada. Hoje não dá mais tempo, mas amanhã bem cedo estarei aqui para removê-la para o hospital, onde será submetida a uma bateria de exames.
     E virando-se para Carmen, perguntou:
     - Que diabos você andou fazendo, minha amiga?
     - Nada demais. Cansei de viver e de dar trabalho a essa dupla maluca que não me larga. Quando li nos jornais que o Pelourinho foi tombado, que minha casa será desapropriada e que seremos postos na rua, resolvi deitar para morrer. Só não sabia que a morte só vem quando bem entende. Aí, para passar o tempo, comecei a ver meu álbum de recordações e acabei por me distrair. Agora já nem sei se quero morrer. Daqui a um mês vou fazer noventa anos e, se estiver viva até lá e ainda não estiver sido despejada, pretendo comemorar a data.
     - A desapropriação é um processo demorado e, quando acontecer ninguém ficará desabrigado. O governo está prometendo remanejar as famílias para outro local.
     - E você acredita em promessa de governo?
     - Se ele não cumprir a promessa, eu vou cuidar de você. E pode ir enviando os convites para a sua festa, pois lhe dou minha palavra que em seu aniversário estará viva.
     No portão, antes de entrar em seu carro, Dulcinha, ao lado de um Dudu morrendo de curiosidade, fez a pergunta:
     - O que o Sr. achou, doutor? Madame Carmen vai morrer?
     - Claro. Todos nós temos que morrer um dia e ela está muito doente...
     - É!? E qual é a doença dela? – perguntou Dudu, aflito.
     - Uma doença incurável: velhice. Mas só depois de analisar o resultado de todos os exames que nossa amiga terá de fazer é que saberei dizer que se, além da velhice, pode existir outras complicações.
     Aos olhos de Dulcinha o doutor acabara de plagiar  Justino, o mais requisitado babalaô da Bahia.
     Mas, se este final não está convencendo o leitor, posso garantir que não houve o despejo imediato, que a festa aconteceu, que foi muito concorrida e que dias depois Madame Carmen morreu com um lindo sorriso nos olhos.
    
E na certidão de óbito constou escrito: causa morte – velhice.

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